José Ribas Neto é jornalista
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Fiquei genuinamente abismado com as opiniões da comentarista de esquerda no Ielcast, Theonia Pereira — não um susto qualquer, mas aquele que se tem ao ouvir alguém atentar contra o bom senso, essa capacidade humana responsável por preservar a sensatez e o bom discernimento.
Mas não é só uma questão de discordância — o que ela defende é, no mínimo, intelectualmente preguiçoso e culturalmente limitante. Ao tratar como “emancipação” justamente a estética que simboliza o declínio cultural das periferias, comete-se um erro perigoso, que só reforça a pobreza simbólica e mantém as comunidades presas a um ciclo de degradação das artes e de miséria moral.
Um olhar atento percebe que o que ela vê como expressão legítima é, na verdade, a normalização do grotesco, da violência e da ignorância, como se fossem, em si mesmas, marcas autênticas de identidade. Quando, na verdade, o que existe é uma homogeneização de ideias vulgares e personalidades submissas ao que é comercialmente aceito como “periférico” — o bad boy à brasileira, com cordão de ouro no pescoço, português de nível baixíssimo e uma Glock na cintura.
É preciso ser realista, e, por isso mesmo, deve-se dizer: esse tipo de visão não liberta ninguém. Pelo contrário, apenas reduz o horizonte cultural dos mais pobres e perpetua a ideia de que eles não podem aspirar a nada além do que já está dado — sonhando como a moça que balança a bunda, sem rosto além de um corpo que se torna objeto de consumo no fluxo, e o menino que sonha com o carro que vale mais cifras do que pode contar, achando que o ilegal é o caminho mais rápido para o sucesso.
O endeusamento moralmente infeliz e intelectualmente obtuso daqueles que se reputam intelectuais da classe proletária ao falarem da cultura periférica, especialmente quando esta exalta o grotesco, a violência e a ostentação vazia, é um dos grandes equívocos da nossa época.
A glamorização da “baixa cultura” e sua normalização midiática criam um ciclo vicioso no qual a periferia, em vez de ser emancipada, torna-se refém de uma estética que não a salva nem lhe oferece um caminho viável, mas a mantém presa a um modelo de brutalidade e ignorância.
Músicas que exaltam a ostentação desenfreada não representam resistência nem ascensão social, mas um reflexo do materialismo mais baixo e moderno, sinal dos tempos de nossa era de likes e pessoas com preços, onde o valor do indivíduo se mede pelo que ele tem, não pelo que ele sabe ou constrói.
O funk ostentação, por exemplo, não é um grito de liberdade, mas uma caricatura do consumismo vazio, onde a identidade se constrói em torno de bens descartáveis, e não de conhecimento ou valores sólidos. É uma cultura kitsch.
E é ainda mais problemático quando se fala do funk proibidão, que não apenas retrata a violência das facções criminosas, mas a glorifica e a torna comum. É a maior prova de que não há reflexão crítica, apenas a estetização da barbárie, transformando execuções, tráfico de drogas e misoginia em entretenimento que gera engajamento virtual e algum dinheiro público em eventos moralmente ambíguos.
Ledo engano de quem acha que o crime se perpetua apenas pela ação direta dos criminosos. Ele também se mantém por meio de uma cultura que o legitima, tornando-o aspiracional para quem cresce ouvindo essas narrativas como se fossem heroicas — uma odisseia em meio a fios expostos e esgoto a céu aberto.
Ignorar essa degradação cultural é um erro tão grave quanto ignorar a atuação das facções, pois é a cultura que molda valores, define aspirações e educa o olhar.
Quando a violência e a estupidez são transformadas em estética dominante, o próprio senso do que é possível e desejável se reduz. O crime se torna “cool”, a brutalidade vira algo aceitável, e a juventude se vê presa em um universo sem referências mais elevadas.
E hoje, parte da esquerda caiu na armadilha do relativismo cultural — pois tudo que é sólido se desmanchou no ar — tratando esse tipo de expressão como equivalente à arte popular tradicional ou mesmo à arte erudita. Mas não há comparação.
O verdadeiro popular — o samba de raiz, o maracatu, o repente, o choro — tem história, complexidade e sofisticação. Não se limita a repetir fórmulas fáceis, mas cria narrativas ricas e musicalidade refinada. Colocar proibidões e músicas de ostentação no mesmo patamar dessas expressões é um insulto à inteligência e um desserviço ao desenvolvimento cultural.
Ao transformar o precário em norma e o grotesco em referência estética, a esquerda cultural progressista não emancipa a periferia — apenas a aprisiona entre a pobreza cultural e moral. Esse tipo de condescendência não fortalece, mas condena a periferia à mediocridade e, em níveis extremos, à própria pobreza financeira, pela resignação ao lugar-comum do funkeiro que diz falsamente que “a favela venceu”, mesmo com o IDH em níveis de países africanos e a violência de países em guerra.
Uma sociedade que normaliza a exaltação do crime, da ostentação vazia e da ignorância não pode formar cidadãos capazes de construir um futuro melhor. E se queremos uma cultura que realmente emancipe, precisamos romper com esse culto ao vulgar e ao degradante. O combate ao crime precisa incluir o combate à sua glorificação simbólica.
A verdadeira resistência não está em enaltecer a miséria estética, mas em oferecer um ideal mais elevado de civilização e cultura para todos.
Pobre também ouve Bach, desde que se ofereça a ele.
*** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do GP1
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