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Áurea Brandão: uma estrela de primeira grandeza

O artigo do desembargador Edvaldo Pereira de Moura, que é diretor da ESMEPI e professor da UESPI.

Foto: Arquivo pessoalEdvaldo Moura
Edvaldo Moura

Desembargador Edvaldo Pereira de Moura,

Membro da 1ª Câmara Especializada Criminal do Tribunal de Justiça do Piauí, Diretor da Escola Superior da Magistratura e professor de Direito Penal e Processual Penal da UESPI


Muito já se tem dito quanto aos caprichos do destino na vida de cada um de nós. Eu, em particular, posso enumerar alguns desses caprichos, que tantas vezes, no silêncio das madrugadas invadem-me o pensamento insone, embaralhado de tantos problemas e angústias de minha ingente e nem sempre compreendida missão de julgar.

As lembranças tensas e ruins aumentam as nossas preocupações, mas as agradáveis caem em nós como uma milagrosa unção dos céus, reanimando o nosso espírito e nos conciliando o sono reparador. As lembranças ruins nos deprimem, as boas nos renovam as forças para as lutas de um novo dia.

Sempre que recorro a meu passado vejo-me no corpo-a-corpo diário com livros e cadernos de apontamentos, ferramentas que escolhi para construir o meu futuro de menino pobre do interior, vivendo sob os cuidados de meus diligentes e laboriosos pais, mas nos limites da modéstia e da parcimônia daquilo que me era disponibilizado. Não tive a infelicidade de sofrer a vilania da miséria, como não bordejei a zona de perigo em que vão se imiscuir, no descaso, alguns meninos ricos.

Igual a muitos jovens do meu tempo, na qualidade de um dos filho mais velho, sempre fui rodeado de respeito, atenção e estima de meus irmãos, sendo a esperança mais alentada pelos meus extremosos genitores. Assim é que saí de Oeiras, minha terra natal, vindo para Teresina. Aqui encontrei outras pessoas, de minha condição, também oriundas de cidades do interior, em busca de estudos.

Dentre os colegas e amigos, elegi um dos mais interessados nos estudos e bem relacionados na Capital, aluno laureado do velho Liceu Piauiense: Luiz Gonzaga Brandão de Carvalho, o Luizinho de dona Áurea, de tradicional família e nascido na histórica e invicta cidade de Piracuruca.

Dona Áurea Brandão e minha mãe eram pedro-segundenses, ambas professoras com o peso das responsabilidades domésticas: a primeira por ser viúva, a segunda por ser meu pai militar, constantemente removido, a serviço, para outros municípios do interland piauiense.

O certo é que eu e Brandão tínhamos como meta: vencer na vida. Vencer na vida, para nós, não significava cumprir etapas ordinárias, alimentadas pelo geral das pessoas. Nossos sonhos diferiam dos ideais da maioria dos jovens do nosso tempo. Nossas ambições não eram compatíveis com os interesses da classe média, muito conformada em obter um diploma de nível superior e, em seguida, profissionalizar-se. Antevíamos horizontes mais promitentes e, por isso, menos acessíveis. Para tanto, levamos a sério a inafastável obrigação de passar nos exames vestibulares, que dariam acesso à velha e respeitável Salamanca.

Uma república de colegas oeirenses, contígua à residência de Brandão, na rua David Caldas, foi por mim escolhida para ser o meu recanto de estudos. Saia de minha modesta moradia, encravada na rua Pará, atravessando ruas em minha bicicleta, a que batizei com o nome de maria ventania, sem nada me deter, para cumprir o trato firmado com os colegas, de iniciar os estudos no horário combinado. Ficávamos ali, dia ou noite, sob os cuidados de dona Aurea que, zelosa e dedicada, percebendo a nossa tenacidade e desmedido esforço, de quando em vez vinha à república, para suprir a nossa mesa de estudos com bolos, doces e refrescos saborosíssimos, sabidamente de sua caprichosa lavra. 

Confesso que na efusão daqueles dias de estudos nunca lembrei de alentar o meu espírito com a presença de elevada doçura e gentileza com que fui tratado por aquela venerável senhora. Possuidora de finíssima educação, elevado espírito fraternal, dona Áurea era discreta e reservada, sem afetação nem amargura. Irmã de homens ilustres, como o professor Wilson Brandão e o Desembargador Álvaro Brandão Filho, dona Áurea transmitia a segurança própria de pessoas inteligentes e de muita leitura. O ar de sua presença bondosa e melíflua só o pude reviver, avaliar e considerar, depois, olhando minha saudosa mãe acariciando com discreta alegria, seus netos e netas, sentindo o que ela sentia, pois, eu também, amadurecido, já tinha meus filhos. 

Poucos são os destinos que, como o nosso, desde o início de sua trajetória cumpriram, com invejável gratidão, aqueles propósitos anelados para seu curso, como os astros percorrem a vastidão do Universo, sob a estrita causalidade das leis da mecânica celeste.

Nascido neste Estado de decantada pobreza, o Desembargador Brandão teve berço honrado numa família de classe média, em cujo seio prodigalizam os exemplos de união, de prosperidade e de vivência, com o mister sagrado do Direito e da Justiça, uma vez que a história do Direito e da Justiça no Piauí, não pode ser escrita, omitindo-se o onomástico Brandão. Aliás, segundo o ínclito mestre Antenor Nascente, o sobrenome "Brandão" significa combate. Seria, pois, uma feliz coincidência com o temperamento disciplinado daquele que fez de sua meta existencial, um motivo de bom combate.

A constituição moral e afetiva do amigo Brandão, é fruto do imarcescível amor e do carinho diuturno do seu anjo da guarda, Áurea Brandão, mãe terna que, em vida, se desdobrava para suprir a ausência do pai exemplar, o empresário Luiz Gonzaga de Carvalho, tão cedo arrebatado para o outro lado da vida. Pelo fato de ser amigo de seu único filho, por muitas e repetidas vezes recebi, também a proteção maternal de seus cuidados e dos seus bons conselhos.

Pelos caprichos do destino, chegaríamos à velha Salamanca e, depois, estivemos nós, por quase duas décadas, como pares da mais Alta Corte de Justiça do Estado. Entre nós, ao longo de tantos anos, houve até dissentimentos na lida profissional, mas duas coisas estão cristalizadas em nós: o vínculo de uma grande amizade, com admiração e mútuo respeito, além da eterna recordação de dona Áurea Brandão, um espírito de primeira grandeza, que ainda hoje ilumina a nossa vida, habita a nossa saudade e se santifica em nossa veneração. 

*** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do GP1

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