* Arthur Teixeira Junior
O caixão não coube inteiro na carroceria, nem de atravessado. A tampa da caçamba teve que ficar aberta. Eu quase caio quando Aluizio passou correndo por uma lombada, e uma coroa de flores remetida pelo Sindicato ficou pelo caminho.
Agora estou aqui em meu velório, numa visão levemente superior a do nível dos olhos de uma pessoa em pé. Embora tenha combinado fazer o velório aqui no Domingão, ninguém falou nada de colocar o caixão em cima da mesa de sinuca. Não gostei muito, nem o pessoal do Tabaco Roxo, bloco carnavalesco do bairro, que tinha combinado um torneio de sinuca para o final de semana.
O pessoal da Repartição está chegando, aos poucos, com cara de desconfiados. Alguns disfarçam a satisfação. Dois figurões, recostados na porta do banheiro das mulheres, lamentam a perda. Quem eles vão sindicar de agora em diante? Eu sequer fui citado na última sindicância, extemporânea, criada para apurar o porquê eu chamei de burro um incompetente. Sindicância para isto? Se fosse um processo da Associação Protetora dos Animais, ou do Sindicato dos Burros defendendo um associado, ainda seria aceitável.
O pessoal da minha cidade também está chegando, com Silvinha de Porta Bandeira. Ainda bem que deu tempo de despedir-me deles antes da cirurgia. Visitei minha cidade na véspera, e tudo estava com a mesma cara.
Bem, quase tudo. Uma ex-vereadora, que perdeu o bolsa família e depois o mandato, levou a maior pisa do marido que não gostou muito de ver sua roupa atirada pela cara-metade na avenida principal da cidade. A ex agora está sem alguns dentes, fora de esquadro e fora de prumo. Não tem Maria da Penha que dará jeito.
Já o maridão da mais influente blogueira do Médio Parnaíba, achou por bem engravidar a garçonete do melhor restaurante da cidade. Agora ele não come nem em casa nem no restaurante.
O Genival acaba de chegar com os “comes”: buchada de bode e tripa de carneiro. Eu havia deixado duas caixas da melhor cerveja pagas para o evento, e Domingão serviu uma cerveja de marca desconhecida e ainda quente. Estão vendendo senhas para entrada no banheiro. Este velório vai acabar literalmente em merda.
Quem não podia chegar bêbado, chegou. Padre Carvalho, o encarregado de encomendar a minha alma (caso eu ainda a tenha). Pra começar, benzeu o corpo com o microfone, confundindo-o com aquela canetinha que esguicha água benta. Na primeira frase, projetou longe sua dentadura que veio alojar-se bem encima de meu falecido nariz. Daqui do alto senti o bafo. O religioso ficou olhando para os presentes, como se aguardasse que alguém resgatasse a peça e devolvesse ao dono. Ninguém se atreveu.
_ “PATIFES, IMBECIS” – berrou um desconhecido ancião lá do fundão. Ninguém o conhecia, mas acho que era o Zé Marreiros.
O buteco do Rafael, logo ali na esquina, começou a tocar em altíssimo volume (como sempre faz) uma seleção de Regaee. Aí virou bagunça. Ninguém mais escutava o Padre, nem o que declamavam os oradores. Os bêbados e contadores de anedotas, emudeceram.
Logo foi criada uma comissão para ir até o barulhento estabelecimento, exigir respeito ao falecido, que, apesar de qualquer sentimento contrário, era falecido, e todos que morrem viram “gente boa”. Formaram a comissão com os mais embriagados da presente cerimônia, que, célere, avançou sobre o dançante boteco.
Mais céleres ainda retornaram, não sem antes levarem uma desconcertante surra dos freqüentadores vizinhos, que não contentes em espancarem fartamente a comissão, agora os perseguiam na volta ao velório, munidos e agitando ferozmente garrafas e cadeiras. Assim que os demais freqüentadores da fúnebre cerimônia, em minha modesta homenagem, perceberam a chegada da turba, prontamente evadiram-se do local, lá deixando-me, só, junto com o resto da buchada e cerveja quente. Ninguém merece, nem morto.
* Arthur Teixeira Junior é funcionário público
Imagem: ReproduçãoArthur Teixeira Junior
Apesar dos esforços da equipe médica, infelizmente (felizmente, para alguns) não deu tudo certo. A cirurgia cardíaca, a qual fui submetido, até que começou bem, mas acabou mal. Eu passei desta para a ... na verdade, não sei para onde. Acabei numa espécie de limbo. Consegui ver a expressão de frustração de toda a equipe médica, não vi minha remoção nem o preparo do meu corpo. Mas vi quem me levou para o velório, no Domingão do Frango: meu colega Aluizio, com sua caminhonete vermelha que utiliza diariamente para entregar bebidas e recolher entulhos.O caixão não coube inteiro na carroceria, nem de atravessado. A tampa da caçamba teve que ficar aberta. Eu quase caio quando Aluizio passou correndo por uma lombada, e uma coroa de flores remetida pelo Sindicato ficou pelo caminho.
Agora estou aqui em meu velório, numa visão levemente superior a do nível dos olhos de uma pessoa em pé. Embora tenha combinado fazer o velório aqui no Domingão, ninguém falou nada de colocar o caixão em cima da mesa de sinuca. Não gostei muito, nem o pessoal do Tabaco Roxo, bloco carnavalesco do bairro, que tinha combinado um torneio de sinuca para o final de semana.
O pessoal da Repartição está chegando, aos poucos, com cara de desconfiados. Alguns disfarçam a satisfação. Dois figurões, recostados na porta do banheiro das mulheres, lamentam a perda. Quem eles vão sindicar de agora em diante? Eu sequer fui citado na última sindicância, extemporânea, criada para apurar o porquê eu chamei de burro um incompetente. Sindicância para isto? Se fosse um processo da Associação Protetora dos Animais, ou do Sindicato dos Burros defendendo um associado, ainda seria aceitável.
O pessoal da minha cidade também está chegando, com Silvinha de Porta Bandeira. Ainda bem que deu tempo de despedir-me deles antes da cirurgia. Visitei minha cidade na véspera, e tudo estava com a mesma cara.
Bem, quase tudo. Uma ex-vereadora, que perdeu o bolsa família e depois o mandato, levou a maior pisa do marido que não gostou muito de ver sua roupa atirada pela cara-metade na avenida principal da cidade. A ex agora está sem alguns dentes, fora de esquadro e fora de prumo. Não tem Maria da Penha que dará jeito.
Já o maridão da mais influente blogueira do Médio Parnaíba, achou por bem engravidar a garçonete do melhor restaurante da cidade. Agora ele não come nem em casa nem no restaurante.
O Genival acaba de chegar com os “comes”: buchada de bode e tripa de carneiro. Eu havia deixado duas caixas da melhor cerveja pagas para o evento, e Domingão serviu uma cerveja de marca desconhecida e ainda quente. Estão vendendo senhas para entrada no banheiro. Este velório vai acabar literalmente em merda.
Quem não podia chegar bêbado, chegou. Padre Carvalho, o encarregado de encomendar a minha alma (caso eu ainda a tenha). Pra começar, benzeu o corpo com o microfone, confundindo-o com aquela canetinha que esguicha água benta. Na primeira frase, projetou longe sua dentadura que veio alojar-se bem encima de meu falecido nariz. Daqui do alto senti o bafo. O religioso ficou olhando para os presentes, como se aguardasse que alguém resgatasse a peça e devolvesse ao dono. Ninguém se atreveu.
_ “PATIFES, IMBECIS” – berrou um desconhecido ancião lá do fundão. Ninguém o conhecia, mas acho que era o Zé Marreiros.
O buteco do Rafael, logo ali na esquina, começou a tocar em altíssimo volume (como sempre faz) uma seleção de Regaee. Aí virou bagunça. Ninguém mais escutava o Padre, nem o que declamavam os oradores. Os bêbados e contadores de anedotas, emudeceram.
Logo foi criada uma comissão para ir até o barulhento estabelecimento, exigir respeito ao falecido, que, apesar de qualquer sentimento contrário, era falecido, e todos que morrem viram “gente boa”. Formaram a comissão com os mais embriagados da presente cerimônia, que, célere, avançou sobre o dançante boteco.
Mais céleres ainda retornaram, não sem antes levarem uma desconcertante surra dos freqüentadores vizinhos, que não contentes em espancarem fartamente a comissão, agora os perseguiam na volta ao velório, munidos e agitando ferozmente garrafas e cadeiras. Assim que os demais freqüentadores da fúnebre cerimônia, em minha modesta homenagem, perceberam a chegada da turba, prontamente evadiram-se do local, lá deixando-me, só, junto com o resto da buchada e cerveja quente. Ninguém merece, nem morto.
* Arthur Teixeira Junior é funcionário público
*** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do GP1
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