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Aproveitarei a minha permanência em Londres para trazer ao leitor uma visão filosófica de alguns aspectos do cotidiano londrino.

Primeiro é importante caracterizar que Londres talvez seja a cidade mais multicultural de todo o planeta, o que me levaria a classificá-la, sem medo de cometer exageros, como a Babel dos tempos modernos. Por aqui, podemos facilmente encontrar pessoas de todas as partes do mundo em uma simples viagem de metrô.


Entretanto, o fato que pretendo destacar ocorreu em uma lavanderia. Aproveito para ressaltar que esse tipo de negócio por estas bandas é concorridíssimo, especialmente a lavagem self-service, na qual a pessoa acompanha pacientemente – por vota de 01 hora – a lavagem de sua própria roupa, sentado frente à máquina em um lugar apertado e movimentado.

Pois bem, em uma dessas lavanderias, a jovem atendente, que fazia as vezes de passadeira, arrumadeira, caixa, faxineira e vendedora de sabão em pó, me chamou a atenção, em razão do seu semblante triste e sisudo. Por certo, a quantidade de tarefas que lhe foi imposta, por si só, já justificaria tal disposição.

Cansado de ver a máquina de lavar centrifugar, aproximei-me de Joanna (nome não fictício), que depois descobri que era imigrante polonesa, e, atrapalhando o seu serviço, passei a conversar com ela. Lá pelas tantas, resolvi fazer-lhe uma das perguntas mais simples e complexas que conheço. Indaguei-a se ela era feliz. Pela primeira vez, ela me olhou com atenção e ruborizou. Com um movimento de ombros, respondeu em um inglês casual: Eu não sei... Após alguns segundos, me disse: Eu tenho um emprego.

Por certo, não retirarei do leitor a interpretação do referido evento, mas gostaria de sugerir que o investigasse no contexto da relação viver/sobreviver.

Quanto da nossa vida diária passamos em atividades meramente repetitivas e não vocacional? Em que medida poderíamos mudá-la em busca de qualidade de vida?

Concluo esta coluna com Marco Aurélio (in Meditações; Tradução de Alex Marins – São Paulo – Editora Martin Claret – 2003).

“Se acaso encontrares nessa vida algo melhor do que a justiça, a verdade, a temperança, a coragem, melhor ainda do que o pensamento que a si mesmo basta quando, submisso à razão, fornece o rumo certo de atividade, que com seu destino se conforma ao aceitar a sorte que não escolheu, se, reafirmo, encontrares algo melhor, abraça-te a isso com todas as forças e goza o bem supremo que descobristes (...)
Caso alguém me convencer, me provar que penso ou procedo erradamente, tratarei de corrigir-me, já que busco a verdade, que nunca fez mal a ninguém. Mas quem persiste no erro e na ignorância faz mal a si mesmo.
De mim, faço o que é meu dever. Desse dever não me afastarão os outros seres que são inanimados, irracionais ou se transviaram e desconhecem seu melhor caminho. (...)
Coloca sua felicidade nas ações de outrem aquele que ama a glória. Aquele que ama o prazer, nas próprias sensações. Aquele que ama a inteligência nas próprias ações põe sua felicidade. (...)
Passar todo dia como se fosse o último, sem agitação, sem moleza, sem falsidade, nisso consiste a perfeição dos costumes. (...)
Se uma causa exterior te perturba, a tua aflição não vem dessa causa, mas, sim, do teu juízo a respeito dela. Em teu poder está a possibilidade de diluir essa aflição. Se teu desgosto decorre de uma disposição interior, quem te impede de corrigir teu estado de espírito.”

Ao nos despedirmos, após um longo e breve diálogo, pela primeira vez vi Joanna sorrir.

Boa sorte a (nós) todos.

Londres/RU, 29 de setembro de 2008.

José Anastácio de Sousa Aguiar
 

*** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do GP1

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