Desembargador Edvaldo Pereira de Moura,
Diretor da Escola Superior da Magistratura do Piauí (Esmepi) e professor da UESPI
Etimologicamente, o termo violência, do latim violentia, deriva do seu cognato violare e se expressa na dualidade substancial, vis absoluta e vis compulsiva. Desde os romanos, essa palavra vem sendo empregada com tais características e sempre foi explicada, como sinônimo de coação e constrangimento físico e moral.
Tida como característica imanente do homo sapiens, uso abusivo da força, expressão insolente, intencional, danosa, física ou moral da agressividade destrutiva, a violência, para ser bem visualizada e compreendida, em sua plenitude, exige estudo especulativo e multidisciplinar. A sua análise não pode ficar adstrita aos estreitos limites da legislação penal, mas apoiar-se em abalizada ampliação conceitual, que permita o cabal entendimento das variadas formas de que se reveste, desde as legalmente reprimidas, às mais sutis, aceitas e até mesmos justificadas pela tripartite função estatal.
A conceituação de violência, traço típico do ser humano, ao contrário da de agressividade, impulso natural, às vezes, indispensável ao ser vivo, para Tarcísio Meirelles Padilha, só ganha significado à luz do humano. Ela expressa, na sua visão, portanto, uma ação humana, acompanhada de consciente e livre manifestação.
Seguindo a mesma esteira de raciocínio, o emérito jurista Caio Tácito, em magistral Conferência proferida em 1986, no Fórum Nacional Sobre Violência, realizado no Rio de Janeiro, pontificou que a violência é, assim, por natureza, um fenômeno humano, que vem desde as sociedades primitivas, podendo ser descrita, basicamente, como uma atividade de destruição de pessoas, de bens e de valores, por oposição aos atos da agressividade benigna.
Com efeito, enquanto a agressividade natural do homem, como elemento biopsicológico de adaptação, nutre os seus desejos e pode conduzi-lo à superação de certas dificuldades, para a sua sobrevivência e evolução, a violência perturba, neurotiza, mutila, ultraja, ceifa vida, ou como ensina Friedrich Hacker, “ameaça, maltrata e destrói o nosso próximo, que possui características semelhantes à nossa e, em princípio, os mesmos direitos”.
Na sua ascendente e perturbadora escalada, a violência, quer urbana, quer rural, clássica ou moderna, manifesta-se nos índices de homicídios dolosos e demais crimes contra a vida; nas lesões corporais e no tráfico de drogas; nos sequestros, nos assaltos a bancos, nos roubos, nos furtos e outros crimes contra o patrimônio; nos crimes contra a liberdade, contra honra e contra a dignidade sexual; no festival diabólico das rodas, na corrupção, no fugidio “White Collar Crime, delito econômico de evidente nocividade social, em que se envolvem figuras aparentemente respeitáveis; nos acidentes de trabalho, no abuso de poder e nos excessos da ação policial; nas agressões ao ecossistema, no terrorismo politico e ideológico; nas ações despóticas dos ditadores e nos conflitos bélicos, motivados por interesses econômicos, políticos ou militares; nos cruentos e inconcebíveis preconceitos raciais, de que são inedificantes exemplos, o apartheid da Africa do Sul e os Estados Unidos da América do Norte; nas despropositadas e fanáticas lutas religiosas, a que assistimos, na Irlanda do Norte, no Oriente Próximo, na Faixa de Gaza, em que católicos, protestantes, palestinos, árabes e judeus, esquecidos dos mandamentos do Divino Mestre e tangidos pelo ódio, matam-se impiedosamente; na própria injustiça social, como ensina Hélio Jaguaribe, a que são submetidos, em todo mundo, milhões de indivíduos; na subnutrição e na fome, que provocam o atrofiamento cerebral, além da revolta e da indignação.
Aliás, em sua candente obra – A Geopolítica da Fome – Josué de Castro, textualmente ensina: “Fustigado pela necessidade de comer, o homem esfomeado pode exibir a mais desconcertante conduta mental. Seu comportamento, transforma-se como o de qualquer outro animal, submetido aos efeitos torturantes da forme.”
Tarcísio Padilha, focalizando a violência em seu sentido amplo, convincentemente, preleciona: “Chega a ser surpreendente, que expressiva parte da humanidade, ainda viva em situação precária de saúde, educação, transporte, habitação, quando o progresso nos permitiu atingir a lua, numa proeza científico-tecnológica sem precedente na história”, acrescentando: “Seria ocioso enumerar todas as formas de que se reverte a violência, como ingrediente de muitas ações humanas. O certo é que, onde quer que se instale a injustiça, onde quer que se frustrem iniciativas salutares, onde quer que se restrinjam direitos fundamentais, onde quer que se invadam as consciências, onde quer que se manipule o poder contra os cidadãos, o homem se desumaniza, se estiola e fenecem as mais puras aspirações da sociedade humana”.
A verdade é que o homem já foi controlado por poderes inimagináveis e o que se presenciou foi que têm subido e têm descido os que ousam dizer: “l’Etat c’est moi”; os que afirmam: “eu governo com os poderes que Deus me conferiu”; e os que bradam como paladinos de um sistema político, não fundado no humanismo e na democracia: “meu governo é do povo, pelo povo e para o povo”.
Em todos esses governos, têm se constituído maiorias e minorias, que interagem em um processo de seleção natural da história: anuentes ou sediciosos, dulcificantes ou acidulantes, agitadores ou pacificadores.
Pelo que os estudiosos já observaram, a outra conclusão não se pode chegar: se a ética, a ciência, a filosofia, o humanismo e a democracia não nortearem as ações dos agentes políticos, o caráter individual do homem jamais mudará e, por isso, as minorias e as maiorias odiar-se-ão eterna e reciprocamente.
As sociedades, entretanto, vêm se transformando e até por questão de sobrevivência, apesar do caótico quadro em que se encontram inseridas, buscam uma porta de saída para, eliminando ou mitigando as desigualdades, nivelarem-se em ideais de bem comum. Não porque estejam caminhando em direção à barca dos bem-aventurados, ou aos momentos dantescos do apocalipse, mas porque, sociedades purgadas sempre procuram eleger valores e habilidades humanas e tecnológicas, capazes de suprirem a grande máquina de uma supercivilização que já desponta.
Em conclusão, apesar de quadro tão dantesco, é possível a sua reversão. Afinal, as trombetas do apocalipse ainda não soaram.
*** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do GP1
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