Após quase dois anos parado, o Senado aprovou, no último dia 26, o projeto de abuso de autoridade, que criminaliza supostos excessos cometidos por juízes e procuradores em diversas situações. O senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), relator do projeto na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Casa, promoveu mudanças no texto que veio da Câmara dos Deputados e que era duramente criticado por associações da classe de magistrados e procuradores.
O projeto, que apesar de ter no abuso de autoridade seu principal tema, apresenta um pacote de medidas anticorrupção, originalmente apresentado à Câmara por iniciativa popular e defendido pelo Ministério Público, também transforma em crime o caixa dois eleitoral e a compra de votos. Aumenta, ainda, a pena para o crime de corrupção, tornando-o hediondo em alguns casos.
Em um intervalo de sete horas, o texto foi aprovado na CCJ do Senado e agora voltará à Câmara, já que o texto aprovado pelos deputados foi alterado. A votação deve ficar para a volta do recesso parlamentar, que começa no próximo dia 17 e termina em 31 de julho.
A tramitação da criminalização do abuso de autoridade ganhou velocidade em meio ao vazamento dos supostos diálogos entre o então juiz e hoje ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, e procuradores da Lava Jato, entre eles o chefe da força-tarefa de Curitiba, Deltan Dallagnol. O conteúdo das supostas mensagens sugerem que o ex-juiz orientava os procuradores durante a operação, o que fere o princípio da imparcialidade e da equidistância entre as partes - acusação e defesa - do juiz.
O que é a lei de abuso de autoridade?
Em 2016, foi apresentado ao Congresso um projeto de lei idealizado pelo Ministério Público Federal e apresentado por meio de iniciativa popular que ficou conhecido como “10 medidas contra a corrupção”. O pacote recebeu mais de dois milhões de assinaturas de apoio. Os deputados, no entanto, desconfiguraram o texto - das dez medidas, apenas quatro foram mantidas - e incluíram nele a criminalização do abuso de autoridade de juízes e membros do Ministério Público, o que foi visto como uma reação da classe política à Lava Jato. Aprovado na Câmara no final de 2016, o projeto ficou parado no Senado até este ano.
À época, a iniciativa foi alvo de críticas associações de magistrados e de procuradores. As principais reclamações foram que o texto previa crimes de abuso de autoridade apenas para magistrados e membros do Ministério Público e deixava de fora os outros agentes públicos. Associações de classe também reclamavam que a lei trazia tipos penais imprecisos como, por exemplo, considerar crime “proceder de modo incompatível com a honra e o decoro de suas funções”. Segundo juízes e procuradores, isso implicaria em uma ausência de segurança jurídica à sua atuação.
O que diz o novo projeto
Houve mudanças no texto após reuniões com a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e com membros do Ministério Público. Pacheco fez sete mudanças e acatou vinte emendas de senadores em relação ao texto que veio da Câmara.
Segundo o novo projeto, é considerado abuso de autoridade e, portanto, passível de criminalização:
-Proferir julgamento em caso de impedimento legal
-Instaurar procedimento sem indícios
-Atuar com “evidente motivação político-partidária”
-Exercer outra função pública (exceto magistério) ou atividade empresarial
-Manifestar juízo de valor sobre processo pendente de julgamento
?O projeto também torna crime a violação dos direitos e prerrogativas dos advogados por parte de magistrados e membros do Ministério Público.
O termo “evidente” não estava presente no texto que veio da Câmara na parte que enquadra a atuação com motivação político-partidária como abuso de autoridade, o que, segundo procuradores e juízes, tornava o trecho muito vago e subjetivo. Uma das principais mudanças foi a necessidade de comprovação de dolo específico para criminalizar o abuso. Ou seja, a autoridade tem que ter tido clara intenção em prejudicar uma parte ou beneficiar alguém ou a si próprio para ser considerada culpada. Segundo o texto, “as condutas só são criminosas quando praticadas com finalidade específica de prejudicar ou beneficiar ou por capricho ou satisfação pessoal”.
Outro pedido dos magistrados acatado pelos senadores foi que divergências na interpretação da lei e na análise de fatos e provas não configurassem crime, como previa o texto anterior. Deste modo, foi retirada do projeto o chamado crime de hermenêutica. A possibilidade de investigados processarem o investigador também foi retirada. As penas para o abuso de autoridade foram suavizadas. Antes a previsão era de reclusão. Com o novo texto, a pena passa a ser de detenção - que não permite que o início do cumprimento seja em regime fechado - de seis meses a dois anos, além da multa.
A nova versão do texto também removeu as partes que previam responsabilização penal a juízes e procuradores por “atuação desidiosa”, ou seja, “desempenhar as atividades profissionais com preguiça, agir com negligência, desleixo e desatenção”. Essas atitudes, portanto, continuam sendo responsabilizadas apenas na esfera administrativa. Outra mudança em relação ao texto da Câmara foi a retirada do trecho que conferia à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a organizações da sociedade civil com mais de um ano de existência a prerrogativa de oferecer queixa em ação penal nos crimes de abuso de autoridade.
Um dos pontos mais criticados pelas entidades de juízes e procuradores foi o que os proíbe de dar opinião sobre processos ainda em andamento, batizado por alguns como “lei da mordaça”. Segundo o texto, procuradores e juízes não podem emitir “juízo de valor indevido sobre o procedimento ou processo em andamento” e só devem se manifestar com “dever de informação ou publicidade”.
Reações
O coordenador da força-tarefa da Lava Jato, Deltan Dallagnol, afirmou que o projeto aprovado tem “pegadinhas” e pode levar a ataques a investigadores. “Somos, sim, a favor de punição adequada do crime de abuso de autoridade, consistente, como aquela prevista no projeto de lei apresentado em 2017 no Senado”, disse, em referência a outro projeto aprovado na Casa, de relatoria do então senador Roberto Requião, mas que parou na Câmara.
Segundo o presidente da Ajufe, Fernando Marcelo Mendes, as alterações feitas pelo senador Rodrigo Pacheco melhoraram o texto da Câmara, principalmente por dois pontos: a necessidade de comprovação de dolo específico e a retirada do crime de hermenêutica. No entanto, ressalta que a associação é crítica ao projeto. “Criticamos o porquê disso estar sendo discutido nesse momento e por que está sendo discutido esse projeto, já que existe o projeto do Requião, que hoje está na Câmara”, diz. Segundo Mendes, esse outro projeto - também citado por Dallagnol - aborda pontos importantes e não atinge só juízes e promotores, mas todas as autoridades públicas que podem de alguma maneira cometer violações.
Um ponto criticado pela Ajufe é o que criminaliza as violações das prerrogativas e direitos dos advogados. Para Mendes, isso gera um “privilégio” a esses profissionais. “Só advogado terá uma prerrogativa que, quando violada, configura crime e só o advogado, quando se sentir com sua prerrogativa violada, poderá mover uma ação penal contra aquele que ele entender que violou algum direito seu”, protesta.
“Para nós, isso concede aos advogados um poder e uma proteção que não tem parâmetro ou equivalente dentro do modelo constitucional brasileiro”, afirma o presidente da Ajufe, que diz que a associação continuará apresentando suas reclamações e reivindicações durante a tramitação do projeto na Câmara. “Certamente nós vamos levar nossas preocupações, nossas ponderações para ver se a gente consegue na Câmara alterar isso de alguma maneira e impedir que essas alterações sejam feitas da maneira como foram apresentadas.”
OAB elogia
Já a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) elogiou, em nota, a aprovação do projeto pelo Senado. Segundo o órgão, o texto “representa um grande avanço para o combate à corrupção e para a atualização do ordenamento jurídico brasileiro”. “A OAB reconhece, assim, o importante trabalho realizado pelos senadores e senadoras, que respondem, com o projeto aprovado, ao grande anseio da sociedade brasileira por mais justiça e mais eficiência no combate à corrupção”, afirma o comunicado.
O advogado e ex-secretário de Justiça de São Paulo, Belisário dos Santos Jr., considera o projeto um avanço pelo fato da lei atualmente em vigor ser muito antiga, de 1965. “A lei atual tem tipos amplos, penas baixas e pouca aplicação, nunca foi considerada uma lei eficiente para punir o abuso de autoridade”, afirma. No entanto, ele pondera que o novo projeto também não é muito específico sobre o que pode ser enquadrado como abuso.
“O juiz é neutro e imparcial, mas no momento da decisão ele rompe a neutralidade, afirma com convicção e veemência a culpa ou absolvição de determinada pessoa e vai buscar nos autos as provas para tal. Temo um pouco o trecho que diz que atuar com evidente motivação político-partidária possa levar a alguma injustiça”, afirma. Segundo ele, o estabelecimento do dolo específico equilibra um pouco isso e diminui as chances de haver decisões subjetivas sobre o abuso de algum juiz ou promotor.
Santos também elogia a criminalização da violação das prerrogativas dos advogados - ponto criticado por juízes e promotores. “Hoje em dia há um desequilíbrio entre a posição do advogado e do Ministério Público, a criminalização da violação dos advogados recupera um pouco esse equilíbrio. A interpretação dos juízes sobre a lei processual penal vem sendo muito alterada, embora a lei permaneça a mesma”, diz.
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