Filas em bancos e supermercados. Medo de ficar sem remédios importados e cautela na hora de se comunicar. Esse é o retrato da primeira semana de guerra na Ucrânia para quem vive na Rússia. “Ainda não está faltando comida, mas parece a pré-pandemia. As pessoas saem comprando tudo para fazer estoque”, disse a russa Anna (nome fictício, como outros personagens da reportagem, por razões de segurança).
O temor de não poder usar os cartões de crédito – impacto das sanções econômicas – faz as filas para sacar dinheiro aumentarem. Para comprar moeda estrangeira, agora é preciso pagar um imposto de 12% sobre o valor. Quem recebe em dólar, vê a conversão ser feita pelo banco segundo o câmbio que ele determina.
Anna vive há 11 anos no Brasil, onde trabalha na comunicação de uma multinacional. Seus pais, aposentados, vivem em uma casa a 100 km de Moscou e não pensam em deixar o país, mesmo diante do estrangulamento das sanções.
Sem falar outro idioma, o casal, na faixa dos 60 anos, se pergunta o que fazer. Como vai ficar a casa, o carro, o cachorro – são questões que tornam a decisão de ir embora mais difícil. “Para mim, é uma negociação diária com meus pais, implorando para virem. No momento, eles pediram duas semanas para organizar as coisas. Mas em duas semanas já será tarde. Estou desesperada e não sei mais o que fazer”, afirma Anna.
Nova rotina
Desde a invasão, os pais de Natalia, uma russa de 38 anos, criaram uma rotina: verificam se os parentes e amigos na Ucrânia estão vivos. Para eles, ver marcas internacionais deixando a Rússia em razão das sanções “é insignificante” diante da tragédia humana. Outra mudança foi a forma de se comunicar com a filha no Brasil. Existe o medo de ser preso em razão da nova lei que criminaliza a cobertura da guerra – que não pode ser chamada de “guerra”, mas de “operação militar especial”.
Os serviços da BBC, Bloomberg e CNN em Moscou, o jornal Novaya Gazeta e a TV alemã Deutsche Welle foram bloqueados, assim como Facebook e Twitter. “É preciso evitar temas sensíveis ao telefone”, diz Natalia. Quando seus pais buscam informações sobre amigos na Ucrânia, não mencionam políticos ou termos que despertem a atenção dos órgãos de vigilância.
Parte da população, em especial os mais velhos, acredita no governo e duvida da existência de uma guerra. “Muitos têm caráter soviético, não sabem inglês e são cortados das fontes de informação. Está no DNA deles acreditar cegamente no líder”, diz Anna.
A doutrinação natural para os mais velhos chega às crianças, que tiveram aulas online obrigatórias para entender a “operação militar especial” de Putin. O Estadão teve acesso a uma parte da apresentação. No texto, a fonte confiável sobre o tema é um vídeo do próprio Putin, a partir do qual os estudantes devem responder a três perguntas. A primeira delas é um pedido para formular a principal razão para o início da “operação militar especial” para “proteger” as repúblicas de Donetsk e Luhansk.
“O povo está dividido por causa da propaganda oficial. Há censura e ninguém pode falar nada. Os canais independentes estão bloqueados”, explica a russa Elena Vassina, professora de Letras da USP especializada na literatura e história de seu país. “A Rússia é um império. Sua história é a história das guerras, do poder. Foi assim na União Soviética e isso não acabou. Para entender a cabeça de Putin, é preciso entender as cabeças imperialistas. Quando sua popularidade cai, ele busca uma guerra para inflar o nacionalismo.”
Temores históricos
Uma das grandes preocupações dos russos é o que vai acontecer com o que está guardado em bancos e seu poder de compra: o preço dos itens de consumo vem crescendo e o rublo, se desvalorizando. Para muitos, a crise lembra os anos 1990, com a hiperinflação, quando o então presidente Boris Yeltsin liberou os preços para criar uma economia de mercado após o colapso da União Soviética.
Para a professora de Letras da USP, a russa Elena Vassina, as sanções alcançam todos os setores na Rússia. “É um estado de guerra. O teatro Bolshoi, por exemplo, tem programação internacional. A mesma cantora passava por vários países, não víamos as fronteiras. Todo mundo vive no mundo globalizado”. Apresentações do ballet estão sendo canceladas e os bailarinos não podem viajar para outros países.
Para os pais de Natalia, a crise econômica e a memória dos anos 1990 torna a saída da Rússia difícil. “Deixar Moscou significa deixar a casa só com uma mala. As leis impossibilitam a retirada de mais de US$ 10 mil por pessoa. As sanções impedem a transferência para bancos estrangeiros. Para o mais velhos, recomeçar a vida e depender dos outros nessa idade é uma decisão difícil”, diz a russa de 38 anos.
O preço dos alimentos já vinha aumentando antes da guerra. Em julho de 2021, segundo pesquisa do jornal Washington Post, 60,4% dos entrevistados disseram gastar quase metade do salário em alimentação.
Para Natalia, nos últimos anos, cresceu o sentimento nacionalista na Rússia. “Nas minhas últimas visitas, notei a intensificação da nostalgia pela época da União soviética. O poder aquisitivo da população caiu e vários produtos importados foram substituídos por análogos nacionais”, afirma.
A percepção de Natalia coincide com a temática de filmes e de programas de TV “glorificando o passado”, além dos símbolos presentes em eventos oficiais, como fitinhas, bandeiras, faixas e slogans e músicas glorificando o líder do Estado – no caso, Vladimir Putin, que está há 22 anos no poder.
Em quase 500 anos de história, a Rússia teve lampejos de democracia. Após o czarismo, quando os russos viveram sob uma monarquia absoluta, o país emendou mais de 70 anos de período soviético. Em seguida, experimentou uma década turbulenta de democratização, durante a presidência de Yeltsin, que terminou em 2000, com a ascensão de Putin.
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