Uma análise preliminar feita por pesquisadores brasileiros e britânicos mostra que a nova variante do coronavírus originária do Amazonas deve ter se tornado predominante em Manaus. O avanço da cepa é apontado como uma das razões para a explosão de casos na cidade e o consequente colapso no sistema de saúde local.
A partir do sequenciamento genético do vírus coletado em exames de pacientes infectados na capital amazonense, os cientistas verificaram que, até novembro, não havia registro da cepa P.1 entre as amostras analisadas. Já no mês de dezembro, 52,2% dos genomas sequenciados eram da nova variante. Em janeiro, esse índice passou para 85,4%.
Embora o número de amostras sequenciadas pelo grupo de pesquisa seja pequeno (142), os cientistas afirmaram que os “os dados sugerem um aumento na proporção de casos da variante P.1 em Manaus”, segundo texto publicado na plataforma científica virological.org pelo pesquisador Nuno Faria, um dos integrantes do Centro Brasil-Reino Unido de Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus (grupo Cadde), que conta com pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
Duas mutações identificadas na cepa brasileira e que também estão presentes em outras variantes descobertas no mundo estão associadas a um maior potencial de transmissão e reinfecção, segundo estudos preliminares.
Especialistas temem que a P.1 já tenha se disseminado para outros Estados brasileiros, mas que não tenha sido ainda identificada pelo baixo número de sequenciamentos realizados no País. A escassez de centros especializados e as dificuldades na aquisição de insumos são entraves para a ampliação do monitoramento genômico no Brasil. Tanto é que a nova variante brasileira foi detectada em cinco países (Japão, Reino Unido, Estados Unidos, Itália e Alemanha) antes de ser encontrada em outros Estados brasileiros.
Somente nesta terça-feira, 26, houve a confirmação de um caso no País fora do Amazonas. A Secretaria da Saúde de São Paulo detectou a variante em três pacientes vindos de Manaus que manifestaram a doença em solo paulista.
Para Ester Sabino, integrante do grupo Cadde e professora do Instituto de Medicina Tropical da USP, é provável que a variante já tenha chegado a outros locais do País. “É muito mais fácil pegar só as pessoas que chegaram do Brasil e sequenciar no Japão do que conseguir sequenciar os brasileiros aqui. Não é tão simples achar (amostras positivas na população geral), mas seguramente a cepa já deve estar circulando em outros Estados do Brasil”, disse.
Desde o início da pandemia, os cientistas brasileiros depositaram cerca de 2,5 mil genomas do SARS-CoV-2 no site Gisaid, banco online de sequenciamentos que traz dados do mundo inteiro. Embora o Brasil seja o país com o terceiro maior número de casos de covid-19 no mundo, com cerca de 9% das infecções registradas, o número de genomas feitos pelo País representa só 0,6% de todos os 424 mil publicados na plataforma. Em comparação, o Reino Unido, que no mês passado identificou uma nova variante no sudeste da Inglaterra, já submeteu ao banco mais de 150 mil genomas.
“Desde o início da pandemia, o Reino Unido organizou todos os polos e universidades para fazer sequenciamento de SARS-CoV-2, conseguiram financiamento e montaram essa estrutura. Além disso, eles têm empresas fabricantes locais de reagentes. A gente depende da importação de insumos”, explica Paola Cristina Resende, pesquisadora do Laboratório de Vírus Respiratórios e do Sarampo do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) e membro da Rede Genômica Fiocruz, responsável por receber amostras de todos os Estados para sequenciamento. No início da pandemia, ela chegou a trabalhar na rede do Reino Unido, onde fazia um pós-doutorado. Em março, ela voltou ao Brasil para auxiliar no monitoramento nacional do vírus.
“Costumamos pedir a cada um dos Estados o envio de pelo menos dez amostras por mês. Elas têm que ser de semanas epidemiológicas e regiões diferentes, para termos diversidade. Com a emergência das novas variantes, pedimos o envio de 30 a 40 amostras de dezembro e janeiro para verificar se a cepa está circulando em algum outro local”, diz ela.
Parte dos Estados não tem estrutura própria para sequenciamento genético e depende de parcerias com centros de excelência como a Fiocruz para ter amostras analisadas.
Essa desigualdade regional fica clara na análise dos genomas brasileiros submetidos ao Gisaid. Mais de 60% dos sequenciamentos depositados na plataforma são do Sudeste. O Centro-Oeste inteiro tem somente 25 amostras presentes no banco.
Além da rede da Fiocruz, referência para o País, o sequenciamento genético de amostras do SARS-CoV-2 é feito principalmente pelas redes Coronaômica, coordenada pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCTI), e, mais recentemente, por uma rede de quatro laboratórios criada pelo Ministério da Saúde em outubro. O Instituto Adolfo Lutz, que identificou a nova variante em São Paulo, faz parte da força-tarefa. Ele já faz sequenciamentos desde o início da pandemia, mas agora integra a iniciativa federal para auxiliar no processamento de amostras de outros Estados.
“Estamos sequenciando 80 amostras por mês que fazem parte da rotina de monitoramento e outras 80 de situações específicas, como de viajantes vindos de locais de surto por nova variante. O objetivo dessa rede é exclusivamente para monitoramento epidemiológico, para ajudar na definição das políticas públicas”, explicou.
Para o virologista Fernando Spilki, coordenador da Rede Coronaômica e professor da Universidade Feevale, as redes existentes têm pessoal capacitado e metodologias consagradas, mas falta capilaridade e insumos para ampliar o número de análises feitas.
“As redes em si são relativamente bem estruturadas, muitas universidades têm equipamentos, mas a maioria dos reagentes e equipamentos é importada, ou seja, cotada em dólar. Com essa situação cambial terrível, temos dificuldades na compra desses insumos”, diz.
Abbud, do Adolfo Lutz, endossa as queixas do colega. “O aparelho que usamos para o sequenciamento completo custa R$ 400 mil, mas, mesmo se formos usar outra técnica mais simples, a de MinION, o aparelho sai muito mais caro no Brasil. No exterior, custa U$ 900. Se formos importar, fica por R$ 17 mil”, conta.
Com poucos centros especializados, os existentes acabam sobrecarregados com a análise de demandas de todo o País. “O fluxo de processamento é constante. O equipamento está rodando 24 horas por dia para a gente conseguir produzir sequenciamentos e dar essas respostas o mais rápido possível”, explica Paola, da Fiocruz.
Os pesquisadores ressaltam que, mesmo com as limitações no número de amostras analisadas, os estudos feitos até agora apontam para o surgimento cada vez mais frequente de novas variantes e para a necessidade de endurecimento das medidas de proteção.“Deveríamos ter um controle maior de deslocamento entre os Estados e dentro das cidades. Só os números de infecções da segunda onda já justificariam uma quarentena mais forte. Com as novas variantes, o cenário piora. Além disso, temos que lembrar que as variantes são resultado de deixar o vírus circular livremente”, diz Spilki.
“O que temos que fazer agora é distanciamento social e vacinar mais pessoas. Temos que nos proteger do coronavírus, independentemente de linhagem A, B ou C”, diz Abbud.
Para Ester Sabino, as medidas de controle de deslocamento ficam dificultadas sem uma ação coordenada pelo governo federal. “O que falta é um plano geral de como controlar o coronavírus. Se o governo federal não tem um plano geral, vai ter menos ainda para as variantes”, afirmou.
A reportagem procurou os Ministérios da Saúde e da Ciência e Tecnologia para falar sobre os investimentos feitos na rede genômica, mas não recebeu resposta.
Risco
A variante P.1 tem mutações importantes na proteína spike, responsável por permitir a entrada do patógeno nas células humanas. Ela é derivada de uma das variantes predominantes no País, a B.1.1.28. É provável que tenha maior poder de transmissão por causa da mutação N501Y, presente também nas variantes identificadas no Reino Unido e na África do Sul.
Outra mutação que causa preocupação é a E484K, já associada em estudos a um potencial de escapar de anticorpos, o que pode favorecer reinfecções e até afetar a eficácia de vacinas. Novas pesquisas estão sendo feitas para determinar se a variante brasileira e as demais são mais contagiosas, letais ou se afetariam o desempenho dos imunizantes.
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