A disparada no número de casos de covid-19 no Brasil, que ocupa quase metade da América do Sul e tem uma fronteira porosa de 16.885 quilômetros com quase todos os países da região, vem tirando o sono do continente. A falta de uma estratégia do governo brasileiro incomoda especialmente governos que, ao mesmo tempo que traçam planos para sair de um longo período de isolamento, tomam medidas para isolar o Brasil.
A Argentina já reclamava da ausência brasileira em teleconferências regionais para encontrar ações comuns contra a covid-19. Mas, até bem pouco tempo, Ginés González, ministro argentino da Saúde, falava constantemente por telefone com seu colega Luiz Henrique Mandetta, ex-ministro brasileiro. Desde que Nelson Teich assumiu, um dos assessores mais próximos de González disse ao Estado que o telefone do ministério parou de tocar.
Na chancelaria argentina, as queixas são as mesmas. Nos corredores do Palácio San Martín, diplomatas confirmam o isolamento brasileiro. “O Brasil não participa de nenhuma das teleconferências entre países da América do Sul para discutir o coronavírus porque não concorda com o que fazemos”, disse uma fonte da cúpula do Ministério das Relações Exteriores da Argentina, que pediu para não ser identificada.
Na quinta-feira, em entrevista a uma rádio de Buenos Aires, o presidente argentino, Alberto Fernández, afirmou ter dito aos colegas Luis Lacalle Pou, do Uruguai, e Sebastián Piñera, do Chile, que o Brasil é “um risco para a região”. “Eu não entendo como (o Brasil) age com tanta irresponsabilidade”, disse Fernández.
O avanço da pandemia preocupa também autoridades de províncias fronteiriças. Em Misiones, que faz divisa com Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, o governador Oscar Ahuad disse que “presta mais atenção à pandemia no Brasil do que na Argentina”. Martín Stanganelli, porta-voz do governo local, afirmou que Ahuad pediu à Casa Rosada para reforçar a segurança na fronteira, depois de detectar barcos clandestinos e pessoas tentando atravessar durante a noite os rios Iguaçu e Uruguai.
Desde o dia 15 de março, a Argentina vive sob rígidas regras de isolamento, o que rendeu ao país elogios da Organização Mundial de Saúde (OMS) e um número baixo de contaminações – 5,6 mil casos confirmados e por volta de 300 mortes. A retomada das atividades econômicas, portanto, terá de ser ainda mais cautelosa em razão do estado da pandemia no Brasil, responsável por 45% das infecções na América Latina.
A abordagem do governo brasileiro é vista com desconfiança também no Uruguai. Na terça-feira, Lacalle Pou mandou reforçar os controles sanitários na fronteira com o Rio Grande do Sul. Após uma reunião de emergência, Álvaro Delgado, secretário da presidência, disse que o governo uruguaio via com “preocupação” a disseminação de casos no Brasil. “A situação é preocupante em algumas cidades brasileiras”, disse.
Na sexta-feira, foi a vez do presidente do Paraguai, Mario Abdo Benítez, manifestar seu descontentamento. “Com o que o Brasil vive hoje, nem sequer passa pela nossa cabeça abrir a fronteira. O Brasil é o lugar onde o coronavírus tem maior expansão no mundo, e isso é uma grande ameaça.”
Em Pedro Juan Caballero, o Exército paraguaio cavou valetas e montou uma cerca de 8 quilômetros de arame farpado em trechos da fronteira com Ponta Porã (MS). “O Brasil tem milhões de habitantes e foi um dos países mais relutantes em adotar medidas de contingência. Isso se nota na quantidade de infectados e de mortes”, disse o senador Blas Llano, presidente do Congresso.
O Paraguai adotou medidas rápidas e duras de confinamento alguns dias após o primeiro caso ter sido detectado, em 7 de março. O saldo tem sido positivo. Até sexta-feira, o país tinha 563 contaminações e 293 mortes por covid-19 – uma boa parte deles, de brasileiros que cruzaram a fronteira, segundo o governo.
Na Colômbia, o presidente conservador, Iván Duque, não manifestou preocupação publicamente com o Brasil, mas a apreensão existe, segundo Julián Fernández Niño, epidemiologista da Universidade Nacional en Bogotá. “Em um mundo globalizado, a resposta para a pandemia não pode ser fechar as fronteiras”, disse Niño ao diário argentino La Nación. “O Brasil é um país de grande desenvolvimento científico, mas existe uma posição anticientífica de seu governo no combate ao vírus.”
Até a Venezuela, cujo sistema de saúde anda à beira do colapso, expressou preocupação. Na semana passada, em pronunciamento na TV estatal, o presidente Nicolás Maduro prometeu reforçar a segurança na fronteira. “Vamos garantir um cerco epidemiológico, sanitário e militar”, afirmou o líder chavista.
O governo conservador da Bolívia, comandado por Jeanine Áñez, que também adotou medidas duras de isolamento, preferiu não julgar a estratégia brasileira. O ministro da Defesa, Fernando López, porém, admitiu na semana passada que o avanço da pandemia no Brasil pode prejudicar a retomada das atividades econômicas no país. “Se continuarmos sendo flexíveis, de nada adiantará a quarentena que fizemos na Bolívia.”
Ministério da Agricultura diz manter diálogo com vizinhos
Ainda que autoridades de Argentina, Paraguai e Uruguai tenham manifestado preocupação com o avanço do vírus no Brasil, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento afasta qualquer possibilidade de isolamento do País. Segundo a pasta, a ministra Tereza Cristina tem boa relação com autoridades dos países vizinhos.
Além disso, diz o ministério, um documento, com novas diretrizes e recomendações para evitar qualquer interrupção no trânsito e no abastecimento do Brasil, está em vigência desde 31 de março. A publicação detalha práticas para desinfetar as unidades de transporte e traz uma lista de recomendações para os transportadores que cruzam as fronteiras. Ainda segundo o ministério, 25 ministros da Agricultura de países da América Latina e do Caribe assinaram um acordo para manter funcionando as cadeias nacionais, regionais e globais de abastecimento.
“Temos tomado medidas assertivas para garantir o abastecimento. Nós e nossos parceiros. Temos defendido a necessidade de manter o comércio fluindo e não chegou a nós nenhuma sinalização de que haverá restrição”, afirmou Flávio Betarello, secretário adjunto de Comércio e Relações Internacionais do Ministério da Agricultura. “O que estão vigentes são as recomendações refletidas nesse documento. Podemos garantir que não faltará comida nas prateleiras do Brasil nem dos parceiros.”
Priscila Rech, adida agrícola do Brasil na Argentina, explicou que, mesmo com a pandemia, os dois países trabalham na área do agronegócio de forma coordenada para evitar desabastecimentos e restrições no comércio de produtos essenciais. Rech citou o trigo – produto em que o Brasil não é autossuficiente – como exemplo de exportações que continuam fluindo. Em março, a Argentina foi o 16.º mercado mais importante para o agronegócio do Brasil – com faturamento próximo a US$ 100 milhões (R$ 573 milhões) em exportações.
Um ex-ministro da Agricultura, ouvido reservadamente pelo Estado, afirmou que não é de interesse de nenhum país da América Latina reduzir o fluxo de comércio com o Brasil. “Entre estar preocupado e tomar alguma medida tem muita distância.”
“O comércio está fluindo normalmente entre nossos parceiros”, disse Camila Sande, coordenadora de Relações Internacionais da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária.
Procurado, o Itamaraty disse que não comentaria “declarações de autoridades estrangeiras”.
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