Paz, justiça, liberdade, igualdade e união. Tais palavras, que normalmente são utilizadas por quem anseia por uma sociedade mais igualitária, surpreendentemente integram o lema de uma das mais perigosas e impiedosas facções criminosas do país: o Primeiro Comando da Capital (PCC). O lema foi publicado no estatuto da facção, cujo conteúdo foi obtido na íntegra pelo GP1 nesta sexta-feira (17), com exclusividade.
Fundado em 1993 dentro do sistema prisional de São Paulo, o PCC possui uma estrutura baseada em uma hierarquia rígida. Os membros da facção são organizados em subgrupos que são submetidos a uma cúpula, composta por líderes chamados “sintonias”, conforme diretrizes estabelecidas pelo estatuto. Semelhante ao Manual Exemplar do Quadro Disciplinar do Bonde dos 40, divulgado em julho por nossa reportagem, o estatuto do PCC revela os pormenores da organização criminosa.
Nossa reportagem teve acesso a um exemplar manuscrito do estatuto, que vale para todos os estados do país. O GP1 apurou que um material similar a esse foi apreendido em uma residência no bairro Mocambinho, zona norte de Teresina, durante operação da Polícia Civil do Piauí, em abril deste ano.
O estatuto foi atualizado pela última vez em 2017. Com 18 itens, o documento conta com uma introdução, na qual a facção afirma que revolucionou o crime no país.
“Nós revolucionamos o crime, impondo respeito através da nossa união e força, que o certo prevalece acima de tudo com a nossa justiça, nós formamos a lei do crime e todos nós respeitamos e acatamos nossas decisões por confiar na nossa justiça”, consta na introdução.
O GP1 destacou alguns trechos do documento que chamam atenção, sobretudo, pelo contrassenso que as regras representam.
Lema
No segundo item do estatuto, o PCC fala do seu lema: “lutar sempre pela paz, justiça, liberdade, igualdade e união, visando sempre o crescimento da organização, respeitando sempre a ética do crime”.
Hierarquia
Um dos principais pontos destacados no estatuto do PCC é a hierarquia, que deve ser seguida à risca, sob pena de morte.
“Todos os integrantes do comando têm por direito expressar sua opinião e tem o dever de respeitar a opinião de todos, sabendo que dentro da organização existe uma hierarquia e uma disciplina a ser seguida e respeitada. Aquele integrante que vier a causar divisão dentro do Comando, desrespeitando esses critérios, será excluído e decretado [de morte]”, diz outro trecho.
Dentro da facção existem várias instâncias, de “sintonia” a “sintonia final”, conforme o estatuto. “Deixamos claro que a sintonia final é uma fase da hierarquia do Comando composta por integrantes que tenham sido indicados e aprovados pelos irmãos que fazem parte da sintomia final do Comando. Existem várias sintonias, mas a sintonia final é a última instância, uns dos principais objetivos da sintonia final é lutar pelos nossos ideais e pelo crescimento da nossa organização”, detalha o documento.
Crimes “proibidos”
O estatuto estabelece os crimes que são imperdoáveis dentro da facção: “o comando não admite, entre seus integrantes, estupradores, pedófilos, caguetagem, extorsão, inveja, calúnia e outros itens que ferem a ética do excluído”.
Para quem sair da facção
O indivíduo que ingressa na facção não encontra tanta facilidade para sair da organização criminosa. “Todos os integrantes devem ter a certeza absoluta que querem fazer parte do Comando, pois aquele que usufrui dos benefícios que o Comando conquistou e pedir pra sair pelo fato da sua liberdade estar próxima ou até mesmo aquele que sair para a rua e demonstrar desinteresse por nossa causa, serão avaliados e se constatado que o mesmo agiu de oportunismo o mesmo poderá ser visto como traidor, tendo atitude covarde e o preço da traição é a morte”, frisa o estatuto.
Harmonia com outras facções
Embora seja de conhecimento público que o PCC tem grandes facções como rivais – no Piauí, a rivalidade se dá entre PCC, Comando Vermelho e Bonde dos 40 – o estatuto aponta que existe certa cordialidade em relação a alguns grupos criminosos.
“Vivemos em harmonia com facções de outros estados. Quando algum integrante de outra facção chegar em alguma cadeia nossa, o mesmo será tratado com respeito e terá o apoio necessário, porém queremos o mesmo tratamento quando o integrante do Comando chegar preso em outro estado em cadeias de outras facções. Se algum integrante de outra facção de outro estado desrespeitar a nossa disciplina em nossa cadeia vamos procurar a sintonia responsável pelo mesmo e juntos procuraremos a solução, e se ocorrer de um irmão nosso estar desrespeitando, a busca da solução será da mesma forma. Deixamos bem claro que isso se trata de facções de outro estado que seja amiga do Comando”, consta no estatuto.
Guerra contra o Estado
Em seu último artigo, o estatuto do PCC demonstra toda a sua determinação em manter uma guerra contra o Estado. A facção estabelece que seus integrantes devem “agir com severidade” em relação à Polícia Militar, frisando que “vida se paga com vida”.
“Todos os integrantes têm o dever de agir com severidade em cima de opressões, assassinatos e covardias realizadas por policiais militares e contra a máquina opressora, extermínios de vidas, extorsões que forem comprovadas, se estiver ocorrendo na rua ou nas cadeias por parte dos nossos inimigos, daremos uma resposta à altura do crime. Se alguma vida for tirada com esses mecanismos pelos nossos inimigos, os integrantes do Comando que estiverem cadastrados na quebrada do ocorrido deverão se unir e dar o mesmo tratamento que eles merecem. Vida se paga com vida e sangue se paga com sangue”, diz o último parágrafo do texto.
Noção deturpada de justiça
O estatuto do PCC demonstra a noção deturpada que os criminosos têm sobre justiça. A facção tenta conferir ao estatuto um tom moralista e ético, um paradoxo, uma vez que se trata de uma organização criminosa cujos integrantes agem de maneira cruel na sociedade, praticando assassinatos, roubos e outros crimes hediondos.
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