O papa Francisco já estava no altar da basílica de Sainte Anne de Beaupré, santuário católico mais antigo da América do Norte, onde celebrou uma missa pela reconciliação entre a Igreja Católica e os povos originários do Canadá na quinta-feira, 28, quando duas mulheres indígenas se aproximaram e ergueram uma faixa com os dizeres “revogação da doutrina”.
A referência à chamada “doutrina do descobrimento”, bulas papais do século XV que autorizaram as metrópoles europeias a colonizar terras e povos não cristãos, foi o último dos protestos realizados pelos indígenas canadenses durante a passagem de Francisco pelo país - marcada por repetidos pedidos de desculpas do papa pelos abusos cometidos contra crianças nativas em internatos católicos no século passado.
Apesar de classificarem a viagem de Francisco ao Canadá como histórica, muitos indígenas consideram que a Igreja Católica ainda tem muito o que fazer para alcançar uma reconciliação com os povos nativos. Desde o fim do século XIX até a década de 1990, o governo canadense enviou cerca de 150 mil crianças a 139 internatos dirigidos pela Igreja, onde foram afastadas de suas famílias, língua e cultura como parte de uma política fracassada de assimilação cultural. Muitos sofreram abusos físicos e sexuais, e se acredita que milhares morreram de doenças, desnutrição ou abandono.
O protesto com a faixa foi breve. As ativistas foram escoltadas para fora da basílica, onde estenderam a faixa em uma grade, e a missa aconteceu sem outros incidentes. Na homilia, Francisco afirmou que a Igreja Católica está disposta a levantar “questões polêmicas” para seguir o “difícil e exigente caminho de cura e reconciliação”.
“Ao nos depararmos com o escândalo do mal e do corpo de cristo ferido na carne de nossos irmãos e irmãs indígenas, também experimentamos profunda consternação, também sentimos o peso do fracasso”, disse o papa. E acrescentou: “Por que aconteceu tudo isso? Como pôde acontecer tal coisa na comunidade dos que seguem Jesus?”.
Enquanto Francisco celebrava a missa, a dançarina indígena Abigail Brooks, de 23 nos, estava do lado de fora usando um vestido de contas laranja costurado com dezenas de minúsculos cones de metal, um enxoval tradicional que pela tradição, a torna portadora de poderes curativos ao dançar.
“É muito importante estar aqui, especialmente para oferecer força com meu vestido de contas, e todo o apoio emocional e tradição que nossos anciãos e sobreviventes precisam”, disse Brooks do lado de fora da igreja.
Centenas de pessoas, especialmente indígenas, se reuniram para ver o papa. Nas proximidades, voluntários queimaram folhas de sálvia e agitaram a fumaça com penas, um ritual tradicional para curar traumas psicológicos. Lá, um curandeiro recita palavras rituais.
“Foi uma experiência conjunta de aliviar uma emoção”, disse Wocawson, um indígena de 19 anos, à France-Presse, na basílica. “(Houve) muitas lágrimas, você sabe, muita raiva, mas... muito amor. É lindo.”
“A verdade veio com todo o sofrimento acumulado. Todo mundo vive na vergonha há muito tempo”, disse Ghislain Picard, chefe regional da Assembleia das Primeiras Nações em Quebec-Labrador.
Mas para muitos, incluindo Brooks, um pedido de desculpas não é suficiente. “Nada foi dito sobre o abuso sexual”, disse ele. “Não podemos concordar com uma reconciliação até que ele a admita”.
Além disso, Picard pediu que os povos indígenas tenham acesso aos arquivos do que aconteceu nessas escolas, a fim de realmente entender a profundidade do que aconteceu com seu povo.
Jimmy Papatie, um sobrevivente das instituições católicas de 58 anos, afirmou que não conseguiria se curar do trauma. “Vivi toda a minha vida com medo por causa do que experimentei naquela escola” disse ele por telefone, em meio a lágrimas. “Estou convencido de que nunca vou curar... a visita do papa, se as pessoas precisarem ouvir, tudo bem. Mas não vai me curar”, completou.
Doutrina do descobrimento
O protesto em Sainte Anne de Beaupré mirou um dos “passos adiante” que os indígenas canadenses cobram que a Igreja Católica cumpra após o pedido de perdão: a revogação da doutrina do descobrimento, que forneceu aos reinos de Portugal e Espanha o apoio religioso para expandir seus territórios na África e nas Américas para espalhar o cristianismo.
Essas bulas papais sustentaram essa doutrina enquanto conceito legal na América do Norte, cunhado em uma decisão da Suprema Corte dos EUA de 1823, que passou a ser entendido como significando que a propriedade e a soberania sobre a terra passaram para os europeus, porque eles a “descobriram”. Ela também foi citada recentemente em uma decisão da Suprema Corte de 2005, envolvendo a nação indígena Oneida.
“Esses estados-nação colonizados, em particular o Canadá e os Estados Unidos, utilizaram essa doutrina como base para seu título de terra, o que realmente significa a desapropriação de terras de povos indígenas”, disse Michelle Schenandoah, representante do clã lobo da Nação Oneida. Ela estava na cidade de Quebec com uma delegação da Confederação Haudenosaunee para levantar a questão com os líderes da igreja.
“Foi um longo genocídio que durou 500 anos, e ainda é uma lei válida até hoje”, disse ela.
A demanda chegou ao primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, que disse ter tratado com o papa a necessidade da Santa Sé “abordar a doutrina do descobrimento”, bem como outras questões, incluindo o retorno de artefatos indígenas alocados nos museus do Vaticano.
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