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Invasão da Ucrânia seria diferente de uma guerra tradicional; entenda

Dois aspectos, o domínio regional e a recessão democrática, precisam ser levados em consideração.

Dezenas de guerras ocorreram nos quase 80 anos transcorridos desde o fim da 2.ª Guerra Mundial. Mas, se a Rússia invadir a Ucrânia nos próximos dias, será uma situação diferente de quase todas elas. Teremos outro sinal de que o mundo pode estar entrando em uma alarmante era de autoritarismo em ascensão.

Eis os dois principais aspectos que distinguiriam uma eventual guerra na Ucrânia.


1. Domínio regional

Uma invasão russa da Ucrânia provavelmente envolveria um dos maiores exércitos do mundo lançando uma invasão terrestre contra um país vizinho sem nenhuma provocação. O objetivo aparente seria a expansão do domínio regional, seja por meio da anexação ou do estabelecimento de um governo fantoche.

Poucos dos conflitos ocorridos desde a 2.ª Guerra se encaixam nessa descrição. Algumas das analogias mais próximas são a invasão soviética do Afeganistão nos anos 1970, da Tchecoslováquia nos anos 1960 e da Hungria nos anos 1950, além da anexação da Crimeia por Vladimir Putin em 2014. Os Estados Unidos, por sua vez, invadiram o Panamá nos anos 1980 e usaram a CIA para derrubar um governo eleito na Guatemala nos anos 1950. É claro que o país também lançou uma série de guerras distantes, no Iraque, no Vietnã e em outros países.

Mas os países mais poderosos do mundo raramente usaram a força para expandir suas fronteiras ou empossar clientes entre os Estados na sua região. Em vez disso, respeitaram em geral os tratados e regras internacionais estabelecidos nos anos 1940. A expressão “Pax Americana” descreve tal estabilidade.

A relativa paz trouxe imensos benefícios. O padrão de vida melhorou muito, com a população vivendo por mais tempo, com mais saúde e mais conforto, em média, do que seus antepassados. Nas décadas mais recentes, os ganhos mais expressivos foram observados nos países de baixa renda. O declínio da guerra desempenhou um papel central: já no início desse século, a proporção de mortes resultantes de conflitos armados foi a mais baixa em toda a história conhecida, como destacaram estudiosos como Joshua Goldstein, Steven Pinker e outros.

Uma invasão russa da Ucrânia seria como o tipo de guerra que em geral evitamos nos 80 anos mais recentes, e que já foi comum. Envolveria um país poderoso lançando-se na missão de expandir seu domínio regional com a tomada de um vizinho. Uma guerra desse tipo — uma guerra de agressão voluntária — poderia ser um sinal de que Putin acredita que a Pax Americana chegou ao fim, e que os EUA, a União Europeia e seus aliados se tornaram fracos demais para reagir com consequências dolorosas.

Como escreveu Anne Applebaum na Atlantic, Putin e seu círculo interno são parte de uma nova geração de autocratas, como os governantes da China, do Irã e da Venezuela: “pessoas que não têm interesse em tratados e documentos, pessoas que respeitam apenas o poder direto".

É por isso que muitos em Taiwan temem pelo destino da Ucrânia, como explicaram meus colegas do New York Times, Steven Lee Myers e Amy Qin. “Se as potências ocidentais falharem na resposta à Rússia, eles incentivam o pensamento chinês em relação a uma ação em Taiwan", disse Lai I-chung, autoridade taiwanesa ligada à liderança do país. Se o mundo entrar em uma era na qual os países voltam a tomar decisões com base, sobretudo, naquilo que seu poderio militar permite, teríamos uma grande mudança.

2. Recessão democrática

Faz anos que os cientistas políticos alertam para um declínio da democracia em todo o mundo. Larry Diamond, da Universidade Stanford, descreveu essa tendência como “recessão democrática".

A Freedom House, que acompanha a situação de cada país do mundo, informa que a liberdade política está em queda desde 2006. No ano passado, a Freedom House concluiu que "a diferença numérica entre os países passando por uma deterioração e os países que tiveram melhorias foi a maior desde o início dessa tendência negativa".

Uma tomada russa da Ucrânia contribuiria para essa recessão democrática de maneira nova: uma autocracia usaria a força para subjugar uma democracia.

A Ucrânia é um país democrático de mais de 40 milhões de habitantes, com um presidente inclinado ao Ocidente, Volodmir Zelenski, eleito em 2019 com 73% dos votos no segundo turno. Essa vitória e as pesquisas de opinião mais recentes indicam que a maioria dos ucranianos deseja viver em um país mais semelhante aos países europeus a oeste (e aos EUA) do que à Rússia.

Mas Putin e seu círculo interno acreditam que as democracias liberais estão em declínio, visão partilhada por Xi Jinping e outros no alto escalão da liderança chinesa.

Eles sabem que os EUA e a Europa enfrentam dificuldades para elevar o padrão de vida de boa parte das suas populações. Putin e Xi também sabem que muitos países ocidentais estão polarizados, rasgados por conflitos culturais entre as áreas mais urbanas e aquelas mais rurais. Os grandes partidos políticos são fracos (como é o caso dos antigos partidos de centro-esquerda da Grã-Bretanha, França e outros países) ou se comportam eles mesmos de maneira antidemocrática (como no caso do Partido republicano, nos EUA).

Esses problemas deram a Putin e seus principais assessores mais confiança para agir agressivamente, acreditando que “a ordem liderada pelos americanos se encontra em crise profunda", escreveu na Economist nesse fim de semana Alexander Gabuev, do Carnegie Center Moscou.

De acordo com a visão do governo Putin, explicou Gabuev: “Uma nova ordem multipolar está tomando forma, refletindo uma guinada irresistível de poder para regimes autoritários que defendem valores tradicionais. Uma Rússia briguenta e ressurgente é uma força pioneira por trás da chegada dessa nova ordem, como o é uma China ascendente".

A situação na Ucrânia continua muito incerta. Putin ainda pode optar por não invadir, dado o potencial de uma guerra prolongada, um grande número de baixas russas e o caos econômico. Uma invasão seria uma aposta espetacular praticamente sem paralelo moderno — o que seria outra razão para tratá-la como sinal de que o mundo pode estar mudando.

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