Um dia depois de o Supremo Tribunal Federal (STF) fechar o cerco contra o "gabinete do ódio", bunker ideológico que supostamente atua no Palácio do Planalto, o presidente Jair Bolsonaro ameaçou a Corte e disse que "ordens absurdas não se cumprem", agravando a crise institucional. Em tom exaltado, Bolsonaro criticou a operação da Polícia Federal, que foi deflagrada na quarta-feira e atingiu seus aliados no âmbito do inquérito das fake news, conduzido pelo Supremo. "Acabou, porra!", esbravejou.
A tensão entre os Poderes preocupa os militares. Depois do tom assumido por Bolsonaro e por seus filhos, o vice-presidente Hamilton Mourão e o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, ambos generais da reserva, foram a público para dizer que rechaçam o golpe. "Quem é que vai dar golpe? As Forças Armadas? Que é que é isso, estamos no século 19? A turma não entendeu. O que existe hoje é um estresse permanente entre os Poderes", disse Mourão.
A cúpula do Congresso também procurou apaziguar os ânimos. Em um dia de muitas articulações políticas, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), se reuniu com Bolsonaro e virou uma espécie de "bombeiro" da conflituosa relação entre o Executivo e o Supremo.
A avaliação de Bolsonaro, porém, é a de que o STF "esgarçou a corda", cometeu "abusos" e extrapolou de suas funções. Para o Palácio do Planalto, o desfecho da crise dependerá das próximas decisões da Corte. "Querem me tirar da cadeira para voltar a roubar", afirmou.
Nos últimos dias, o governo tem sofrido uma sucessão de derrotas no Supremo, a maioria delas por decisões individuais dos ministros Celso de Mello e Alexandre de Moraes. O estopim para a nova crise ocorreu, no entanto, após a ação determinada por Moraes, relator do inquérito das fake news, que investiga ameaças, ofensas e calúnias dirigidas a integrantes do STF. Na operação de anteontem, a PF apreendeu documentos, computadores e celulares em endereços de apoiadores do presidente. "Mais um dia triste na nossa história. Mas o povo tenha certeza: foi o último", afirmou Bolsonaro, dizendo ter as "armas da democracia" nas mãos.
Empresários, políticos e blogueiros bolsonaristas são alvo da investigação aberta no STF em março de 2019. Comandado pelo vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho do presidente, o "gabinete do ódio" - com influência nas redes sociais do governo - foi classificado por Moraes como "associação criminosa". "Querem tirar a mídia que eu tenho a meu favor, sob o argumento mentiroso de fake news. Idiotas inventaram gabinete do ódio. Outros imbecis publicaram matérias disso e lamento julgamento em cima disso", disse Bolsonaro.
"Ordens absurdas não se cumprem e nós temos que botar um limite nessas questões. Não dá para admitir mais atitudes individuais de certas pessoas, tomadas de forma quase que pessoais", emendou.
Ministros
Bolsonaro defendeu os ministros Abraham Weintraub (Educação) e Ricardo Salles (Meio Ambiente), que fizeram afirmações polêmicas na reunião ministerial do dia 22 de abril, e culpou Celso de Mello, decano do Supremo, pela divulgação do vídeo com o conteúdo do encontro. "A responsabilidade de tornar público aquilo é de quem suspendeu o sigilo de uma sessão cujo vídeo foi chancelado como secreto", disse.
A reunião integra o inquérito aberto por Celso de Mello para investigar denúncia feita pelo ex-ministro da Justiça Sérgio Moro de que Bolsonaro tentou interferir politicamente na PF. Na reunião, Weintraub afirmou que, se dependesse dele, "botava esses vagabundos todos na cadeia, começando pelo STF". Salles, por sua vez, sugeriu que o governo aproveitasse o momento de "tranquilidade" na cobertura de imprensa - atualmente com foco na pandemia do coronavírus - para passar a "boiada" de medidas que simplificam normas no Meio Ambiente.
Na terça-feira, Alexandre de Moraes deu cinco dias para Weintraub prestar depoimento à PF sobre suas declarações. O governo recorreu e impetrou, perante o próprio Supremo, um habeas corpus para tentar impedir o depoimento. Com a assinatura do ministro da Justiça, André Mendonça, o pedido de liminar se estendeu a "todos aqueles que tenham sido objeto de diligências" no inquérito das fake news.
Em transmissão ao vivo na noite de anteontem, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), tratou a ruptura institucional como algo inevitável. "Até entendo quem tem uma postura moderada para não chegar num momento de ruptura, de cisão ainda maior, de conflito ainda maior. Mas, falando abertamente (...), não é mais uma opinião de se, mas de quando isso vai ocorrer", afirmou o deputado ao lado de alvos da investigação.
Eduardo disse nesta quinta-feira que o poder moderador para restabelecer a harmonia entre os Poderes não é o Supremo, mas, sim, as Forças Armadas. Bolsonaristas têm compartilhado mensagens sobre o artigo 142 da Constituição, segundo o qual as Forças Armadas são subordinadas ao presidente.
Militância
Depois de impor uma série de reveses ao Palácio do Planalto, o STF está acompanhando com atenção se o presidente Jair Bolsonaro vai cumprir a promessa de desobediência de decisões judiciais. A avaliação neste momento é a de que apesar das declarações do chefe do Executivo, que inflamam a militância bolsonarista, o governo tem seguido dentro do caminho do direito, respeitando as regras do jogo democrático até aqui. Ministros do STF, no entanto, não descartam a possibilidade de Bolsonaro radicalizar ainda mais e colocar em prática o seu discurso.
Integrantes da Corte apontam que, mesmo contrariado, o Planalto decidiu entrar com um habeas corpus no STF contra a determinação para que o ministro da Educação, Abraham Weintraub, preste depoimento à Polícia Federal sobre as declarações na reunião ministerial de 22 de abril. Na ocasião, Weintraub disse que, se dependesse dele, "botava esses vagabundos todos na cadeia, começando no STF".
Uma das preocupações dentro do STF é saber até onde o governo vai esticar a corda e desistir dos instrumentos legais para confrontar o Judiciário, o que elevaria a crise a outro patamar. Um ministro do STF ouvido reservadamente pela reportagem avalia que não há risco de ruptura democrática e definiu a fala de Bolsonaro como "as bravatas de sempre". A opinião é compartilhada por outros ministros, mas há um clima de apreensão dentro da Corte com o recrudescimento da postura do chefe do Executivo.
O Supremo está em alerta constante com o "jogo de cena" do Planalto. O relator do habeas corpus a favor de Weintraub é o ministro Edson Fachin, que decidiu pedir informações ao ministro Alexandre de Moraes antes de decidir sobre o pedido do governo para trancar o inquérito das fake news e barrar o depoimento do titular do Ministério da Educação (MEC).
O atual entendimento do STF é o de que não cabe habeas corpus contra decisão individual de um outro ministro da Corte - no caso, quem determinou o depoimento de Weintraub foi Moraes, relator do inquérito que apura ameaças, ofensas e fake news contra integrantes do STF e seus familiares.
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