Desembargador Edvaldo Pereira de Moura
Diretor da ESMEPI e Professor da UESPI
“A morte de cada homem diminui-me, porque
sou parte da humanidade. Portanto, nunca procure saber
por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti.”
John Mayra Donne
(Londres: 1572; Londres: 1631)
No dia 31 de março de 1631, em Ludgate Hill, na velha Londres, os sinos da imponente Catedral de São Paulo, dobraram no cerimonial fúnebre do advogado, poeta e pastor anglicano, ex-decano daquele templo, John Mayra Donne. Ele tinha 59 anos de idade, quando um câncer de estômago antecipou o seu chamado ao Paraíso Eterno.
John Donne, pouco antes de expirar, fez-se retratar com as feições e as vestes de um defunto recém redivivo de sua sepultura, acreditando, convictamente, nas proféticas lições de São João, o vidente de Patmo, que escreveu o Apocalipse, último livro da Bíblia, quando estava exilado em uma Ilha do Mediterrâneo, falando sobre o fim dos tempos, a ressurreição dos mortos, dizendo, ipsis litteris: “Vi, então, um novo céu e uma nova Terra, pois o primeiro céu e a primeira terra desapareceram e o mar já não existia. Eu vi descer do céu, de junto de Deus, a cidade santa, a Nova Jerusalém, como uma esposa ornada para o esposo. Ao mesmo tempo ouvi do trono uma grande voz que falava: Eis aqui o tabernáculo de Deus com os homens”, acrescentando, com outras palavras: Deus passará a habitar com todos eles e tudo mudará, não havendo mais morte, mas alegria e felicidade.
Em tão complexo texto existem muitas revelações de esperança, expressadas em linguagem simbólica, vaticinando a existência de um novo céu, de uma nova terra e um tempo de cura e libertação, para uma vida de justiça e liberdade.
O retrato surreal de John Donne, a seu pedido, foi pendurado em uma das paredes de sua casa, como incontroversa, indubitável, incontestável e irrepreensível lição e exemplo sobre a transitoriedade da vida. A estátua que o pereniza, junto à sepultura, feita pelo artista que a esculpiu, não traz as feições de um homem, que não chegou a completar 60 anos de vida, mas o desenho, impresso em sua mortalha, em que mandara escrever, em latim, como epígrafe, parte de um dos seus imortais poemas: “A morte de cada homem diminui-me, porque sou parte da humanidade. Portanto, nunca procure saber por quem os sinos dobram”, porque eles dobram por todos nós.
De fato, como ensina John Donne, a morte do ser humano nos apequena, nos torna menor, nos diminui, como o faz com a humanidade a que pertencemos.
Em outra manifestação, igualmente famosa, ele pregou mais uma inconcussa verdade e mostrou a profundidade de sua formação humanística, asseverando: “Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo. Todos são parte do continente, ou seja do todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa ficará diminuída como se fosse um promontório”.
Por Quem os Sinos Dobram, foi o título que o jornalista e romancista norteamericano, Ernest Hemingway, Prêmio Nobel de literatura de 1954, deu a seu romance, publicado em 1940, baseado nos horrores inomináveis ocorridos durante a Guerra Civil Espanhola de 1937. Hemingway lá estivera, como jornalista, correspondente de seu país. Apoiado em seu romance, seria lançado, em 1943, nos Estados Unidos, o filme homônimo, estrelado por Gary Cooper e Ingrid Bergman, com a duração de 170 minutos, ainda hoje tido com um dos maiores sucessos do cinema universal, de todos os tempos.
Enerst Hemingway, inbuído da generosidade e da sensibilidade humana encontradas nos poemas de John Donne, produziu uma obra imorredoura, onde o real e o ficcional se adensam para mostrar à humanidade que, numa guerra, os atos de vilania, crueldade e desrespeito à condição humana, são vezos inescrupulosos normais, para qualquer uma das partes em conflito. Não foi à toa que o jornal francês Le Monde listou esse livro de Hemingway, como uma das 100 melhores produções intelectuais produzidas no século 20.
Ao concluir tão singelo texto, não posso deixar de registrar que no dia 2 de julho de 1961, mês do seu aniversário de nascimento, quando completaria 62 anos de idade, sem encontrar solução no álcool, acossado pela hipertensão, pelo diabetes, pela depressão e pela perda gradativa da memória, Enerst Hemingway deu fim à sua própria vida. Margaux, sua neta, que na época tinha 7 anos de idade, repetiu o ato desesperado do seu avô e de seu bisavô, pai de Ernest Hemingway, no mesmo triste mês de julho. Em três trágicas situações, os sinos dobraram pela família Hemingway. Hoje, mais de 300 anos depois que John Donne escreveu os seus emblemáticos versos, continuam os sítios de guerra juncados de cadáveres na terra ou no mar, sem direito a um sepultamento digno, como está ocorrendo, igualmente, com as vítimas fatais da Covid-19, que atormenta e angustia todos os países do mundo. No entanto, no anonimato de suas pesarosas badaladas, os sinos continuam exercitando, despreconceituosamente, a missão de que sempre estiveram encarregados.
Como é de sabença geral, o mundo vive e experimenta, nos dias que correm, além dos horrores de localizados conflitos bélicos, um dos mais assombrosos períodos da humanidade, marcado pelo flagelo universal de tão avassaladora pandemia, que já ceifou a vida de milhares de pessoas em todos os continentes, sem lhes permitir, sequer, o natural direito a um sepultamento digno. A rigor, com essa terrível pandemia, se pensarmos bem, estamos diante de uma catastrófica guerra, lutando contra um inimigo comum e invisível, que jamais será abatido por nenhum armamento bélico, por mais poderoso que seja. Refletindo sobre o momento histórico e desafiador em que nos encontramos, chegamos à conclusão de que se quisermos vencer essa conflagração mundial, a sensatez, a coragem cívica e a inteligência, estão a nos mostrar, que a única alternativa de que dispomos, aponta para o investimento na ciência e para a exaltação do elevado nível de educação política e de consciência crítica, que devem nortear as ações de todos nós.
Como nenhum homem é uma ilha, conforme ensina John Donne, e a morte de cada um diminui a humanidade, como um todo, o certo é que os sinos continuam dobrando por mim, por ti e por todos, enfim.
*** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do GP1
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