Nos últimos dias tem-se discutido no Brasil a utilização dos recursos do Fundo Partidário e do Fundo Eleitoral das eleições 2020 para o combate ao Coronavírus e os seus graves efeitos econômicos, sociais e em termos de saúde pública. A soma dos recursos envolvidos ultrapassa o montante de 2 bilhões de reais.
A mais recente decisão sobre o tema veio do juiz federal Itagiba Catta Preta Neto, da 4ª Vara Cível da Justiça Federal em Brasília que disse em sua decisão em uma ação popular que lhe foi apresentada: “Determino, em decorrência, o bloqueio dos fundos eleitoral e partidário, cujos valores não poderão ser depositados pelo Tesouro Nacional, à Disposição do Tribunal Superior Eleitoral. Os valores podem, contudo, a critério do Chefe do Poder Executivo, ser usados em favor de campanhas para o combate à Pandemia de Coronavírus – Covid-19, ou a amenizar suas consequências econômicas”.
- Foto: Divulgação/AscomDaniel Oliveira
E seus fundamentos jurídicos, o Juiz federal dispõe: “Nesse contexto, a manutenção de fundos partidários e eleitorais incólumes, à disposição de partidos políticos, ainda que no interesse da cidadania (Art. 1º, inciso II da Constituição), se afigura contrária à moralidade pública, aos princípios da dignidade da pessoa Humana (Art. 1º, inciso III da Constituição), dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (Art. 1º, inciso IV da Constituição) e, ainda, ao propósito de construção de uma sociedade solidária (Art. 3º, inciso I da Constituição)”.
Esse tema, traz como pano de fundo uma interessante discussão constitucional que envolve o princípio constitucional da separação dos poderes. Isto porque, como visto acima, o Poder que tem sido protagonista nessa discussão de usar as verbas eleitorais de 2020 para o combate ao Coronavírus tem sido o Judiciário, e não o Legislativo que definiu o orçamento ou mesmo o Executivo que cabe cumprir o orçamento aprovado pelo Congresso Nacional.
Assim, a pergunta que fica é exatamente essa: é constitucional a intervenção do Judiciário em alterar a destinação das verbas da eleição 2020 para o Coronavírus?
O momento constitucional e jurídico que estamos vivendo pode ser classificado como neoconstitucionalismo, onde há a prevalência do chamado Estado Constitucional de Direito e o Poder Judiciário passa a ter autonomia constitucional para dar decisões judiciais interfiram nos demais poderes e órgãos, desde que busquem a prevalência e consagração dos direitos fundamentais.
Em que pese essa possibilidade de o Judiciário interferir, deliberar ou mesmo dar decisões judiciais que tratarem e impliquem em clara interferência nos demais Poderes da República, há parâmetros e limites constitucionais para essa atuação.
Esses limites ao chamado ativismo judicial podem ser observados nos princípios e valores previstos na Constituição logo em seus primeiros dispositivos, a saber: art.1º,I, parágrafo único “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. E art. 2º: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.”
Essa harmonia e independência, pressupõe que o Judiciário somente pode ou deve intervir em matéria que envolva a atribuição dos demais Poderes, como é o caso da utilização dos recursos da eleição 2020 para o combate ao Coronavírus, quando os respectivos Poderes não fizeram a sua obrigação legal de definir as estratégias ou meios legais de atuação sobre determinado tema ou direito fundamental envolvido.
No caso que envolve o Coronavírus, temos visto diariamente tanto o Congresso Nacional quanto o Poder Executivo adotado um conjunto de medidas administrativas e legais sobre o combate ao Coronavírus. Tudo dentro de suas atribuições legais e constitucionais e para fins de dar eficácia e proteção aos direitos fundamentais à saúde, segurança e vida das pessoas.
Assim, a intervenção do Poder Judiciário na execução orçamentária e financeira do orçamento previsto para as eleições 2020 destinando as referidas verbas para o Coronavírus mostra-se como inconstitucional, por ofender os princípios constitucionais da soberania popular e da separação dos poderes.
Por fim, cabe destacar que pelo regime de competências e atribuições previstas na Constituição é possível sim destinar os recursos do Fundo Eleitoral e do Fundo Partidário para o combate ao Coronavírus, desde que isso seja feito pelo próprio Congresso Nacional, através de alteração legislativa própria, submetida a sanção presidencial do Chefe do Executivo Federal.
Daniel Carvalho Oliveira Valente é Advogado com atuação nas áreas do direito eleitoral e direito penal, professor e ex-Secretário de Justiça do Estado do Piauí.
*** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do GP1
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