Por Flávio Cristiano Costa Oliveira e Sérgio Luis Rego Damasceno
1. Em sua obra “ O que é justiça?”, o professor Hans Kelsen leciona que, geralmente, a conduta humana costuma ser regulada por normas de natureza jurídica, moral e religiosa. Ao desiderato deste opúsculo, deter-nos-emos às duas espécies primeiras.
A diferença entre as normas jurídicas e morais reside, fundamentalmente, na forma de criação e na natureza da sanção.
Assim, as normas jurídicas são regulamentos de comportamento emanados do Estado, a partir de um procedimento legislativo, estando, devidamente, positivadas. Ademais, a sanção cominada ao descumprimento de suas prescrições fica a cargo de órgãos e instituições estatais criados pela lei.
As normas de cunho moral, por seu turno, são produto da vivência social, do costume consagrado, daquilo que com o cotidiano e o tempo se convencionou por certo, errado, adequado, justo ou não. A sanção pela infringência de normas morais é promovida pelo próprio grupo social que a estabeleceu.
Estabelecidos os pontos de diferenciação entre normas jurídicas e normas morais, impende aos propósitos deste mister, breves considerações acerca das espécies de normas jurídicas.
2. Dentre as modalidades de normas jurídicas podemos destacar as normas jurídicas civis, penais e administrativas.
As normas jurídicas civis regulam as relações jurídicas de natureza privada das quais participam os sujeitos de direito. As normas jurídicas de direito penal regulam a relação jurídica penal estabelecida entre o Estado e o autor de condutas que ofendem ou expõem a risco bens ou direitos tutelados pelo ordenamento jurídico. As normas jurídicas administrativas regulam as relações jurídicas estabelecidas entre a Administração Pública, de um lado, e , do outro, seus servidores, administrados ou contratados. Ao estudo em questão, interessam as normas administrativas que regulam a relação jurídica estabelecida entre a Administração Pública e seus servidores, mais precisamente, as normas disciplinares.
À cada categoria de norma jurídica corresponde uma modalidade de responsabilidade, daí podermos falar em responsabilidade civil, penal e administrativa.
Responsabilidade significa a imputação, que se faz ao sujeito de direito, por o mesmo ter descumprido uma norma jurídica. As modalidades de responsabilidade, em tese, são independentes, entretanto encontram pontos de intersecção e influências devido várias circunstâncias, sejam por questões probatórias ou pela primazia da esfera de imputação penal.
O fato é que, tanto a conduta de um cidadão, quanto a conduta de um servidor público podem ensejar responsabilidade de natureza civil, penal e administrativa.
Exemplificando, cidadão que sem ser habilitado guia veículo automotor vindo a atropelar e vitimar pedestre. Civilmente terá que arcar com as despesas do funeral e indenizar materialmente e moralmente os parentes e dependentes da vítima. Penalmente, responderá ação penal pelo crime de homicídio culposo na modalidade de imperícia. Administrativamente, sofrerá as imposições administrativas que o Código de Trânsito Brasileiro dispuser.
Encontra-se , em situação similar, o servidor público que, estando no seu horário de expediente, vem a ofender a esfera de interesses de um usuário. Dependendo da amplitude da conduta, responderá civil, penal e administrativamente. Ao tema, interessa as modalidades de responsabilidade afetas aos servidores públicos.
Ocorre que existe diferença entre a responsabilidade administrativa aplicável ao cidadão e aquela aplicável ao servidor.
A responsabilidade administrativa do cidadão pode ser chamada de imprópria, uma vez que não existe relação jurídica de direito público entre ele e a Administração Pública.
Já a responsabilidade administrativa imputada ao servidor público pode ser qualificada como própria ou disciplinar, uma vez que existe relação jurídica de direito público entre o servidor e a Administração Pública.
A diferença entre as três modalidades de responsabilidades são: a) originariamente, as responsabilidades penal e civil são avaliadas por uma autoridade judicial, enquanto que, originariamente, a responsabilidade administrativa do servidor público é avaliada por autoridades administrativas, onde, apenas pelo princípio da inafastabilidade da jurisdição, poderá chegar ao crivo de uma autoridade judicial que, ainda assim, se limitará a analisar aspectos formais e não de mérito; b) as responsabilidades civil e penal são promovidas por meio de ações judiciais, no âmbito do processo judicial, enquanto que a responsabilidade administrativa do servidor público é promovida por meio de um processo sui generis de natureza administrativa, ao qual se procura aplicar princípios reguladores do processo judicial; c) as autoridades judiciárias são dotadas de amplas garantias que a protegem de ingerências internas ou externas no exercício da função jurisdicional, enquanto que as autoridades administrativas são desprovidas de mecanismos legais suficientes que a tornem incólumes de sofrerem interferências endógenas ou exógenas ao ambiente administrativo.
Neste momento da exposição, vale salientar que a incidência da responsabilidade administrativa própria dos servidores públicos enfrentam limitações em normas legais de natureza constitucional e infraconstitucional, queremos dizer, na Constituição Federal e no Código Civil Brasileiro.
3. O inciso X do artigo 5º da Constituição Federal Brasileira de promulgada em 1988, tutela sob o manto pétreo e imutável dos Direitos Fundamentais, o direito à inviolabilidade da intimidade e da vida íntima, seja o titular brasileiro, nato ou naturalizado, servidor público ou não, garantindo ainda o direito de indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
Seguindo a mesma esteira, o artigo 21 do Código Civil Brasileiro afirma que a vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.
Consoante tais normas, percebe-se que ao indivíduo, mesmo sendo um servidor público, é garantido um momento, um núcleo quase inatingível de natureza íntima e privada, onde ele não atua na qualidade de servidor público, mas como um cidadão comum, praticando atos e negócios jurídicos cujas conseqüências, positivas ou negativas, somente a ele podem ser imputadas.
Vários outros dispositivos legais ratificam tal entendimento.
O artigo 37, § 6º da Constituição Federal de 1988, estabelece como condição para o surgimento da responsabilidade civil objetiva do Estado, que o agente público tenha agido na qualidade de agente público. Logo, mutatis mutandis, o próprio Estado reconhece que existe um momento em que o agente público não age nesta qualidade, hipótese em que não cabe ao Estado ser garantidor desta atuação.
O próprio Código Penal Brasileiro, em seu artigo 331, em harmonia como nosso entendimento, somente resguarda a autoridade do servidor público quando o mesmo estiver no exercício de suas funções ou agir em razão dela.
Estando em sua esfera particular, intima ou privada de convivência, agindo em patamar de igualdade como os demais cidadãos, ao servidor público somente pode ser imputada responsabilidade civil, penal e administrativa imprópria( a mesma imputada ao cidadão comum), mas nunca administrativa própria ou disciplinar, pois não pode cometer infração administrativa quem não está no exercício da função pública e nem age em razão dela.
É completamente equivocada a idéia que certos servidores públicos têm, devido a essencialidade de suas atribuições, de que são servidores públicos durante as 24 horas do dia, pois:
a) o trabalho escravo, sem limite de horário e tarefas é incompatível com as Convenções e Tratados Internacionais e com a Constituição Federal de 1988;
b) o § 3º do artigo 39 da Constituição Federal prevê expressamente a aplicação de vários direitos trabalhistas aos ocupantes de cargos públicos, dentre eles a limitação da jornada de trabalho, direito ao repouso semanal remunerado, gozo de férias e licenças;
c) enquanto o servidor público não estiver no exercício de sua função, normas administrativas organizarão a prestação do serviço em regime de plantão para que sobre estes servidores recaia o dever jurídico de agir nas situações emergenciais e
d) o lazer e a convivência familiar merecem especial proteção do Estado.
4. A questão principal que nos motivou a publicar tal artigo, é que o Estado, no escopo de ter domínio sobre todos os aspectos da vida do servidor público, acaba fazendo aprovar normas estatutárias cujo conteúdo, as vezes, invade, insofismavelmente, a esfera de existência íntima e privada dos seus agentes administrativos.
Tais normas invasoras costumam ter o seguinte conteúdo: o servidor público deve manter conduta pública e privada compatível com a dignidade da função pública que exerce.
Quanto à exigência de que o servidor, no ambiente público, tenha conduta pública compatível com a dignidade de sua função, tal exigência não oferece grandes questionamentos.
O problema é quando o Estado utiliza-se dessa norma para justificar a instauração de procedimentos disciplinares administrativos, como sindicâncias investigatórias, sindicâncias administrativas ou processos administrativos disciplinares, com o espeque de adentrar e expor a vida íntima e privada dos seus servidores.
O fato do controle preventivo de constitucionalidade, exercido pelas Comissões de Constituição e Justiça dos órgãos legislativos e pelo veto do chefe do Poder Executivo, não ter funcionado, não significa que o controle repressivo de constitucionalidade não possa extirpar do ordenamento jurídico, pela via de ação ou de exceção, normas estatutárias disciplinares invasoras da vida privada e íntima dos servidores públicos.
Pela inteligência do escorço jurídico retrodito, é claro que normas disciplinares violadoras da intimidade do servidor público padecem de inconstitucionalidade material e podem perfeitamente ser retiradas da ordem jurídica em virtude da ofensa frontal a um dos direitos fundamentais, um dos pilares do Estado Democrático de Direito.
Assim, qualquer servidor público que estiver sofrendo ou ameaçado de sofrer violação em sua vida íntima e privada pela instauração de procedimento administrativo disciplinar, instaurado com fulcro em norma disciplinar invasiva e inconstitucional, poderá fazer uso do Mandado de Segurança, preventivo( visando trancamento) ou repressivo ( visando declaração incidental da inconstitucionalidade), que é o remédio, genuinamente brasileiro, utilizado na tutela de direito líquido e certo, não amparado por hábeas-corpus ou hábeas- data, impetrado perante a autoridade judiciária competente para julgar ato da autoridade administrativa ou política responsável pela instauração do indevido procedimento disciplinar.
5. Conclusões.
A responsabilidade administrativa própria de servidores públicos, somente tem respaldo jurídico, quando visar apurar a conduta do servidor que estiver no exercício da função pública ou ter agido em função desta.
A conduta íntima e privada do servidor, por expresso dispositivo constitucional, encontra-se imune à incidência de normas administrativas disciplinares.
A esfera privada do servidor somente permite a responsabilidade civil, penal e administrativa imprópria, uma vez que em tal âmbito, o servidor age em pé de igualdade com os demais cidadãos.
A invasão do aspecto íntimo da vida do servidor público possui os seguintes infortúnios: a) coloca, injustamente, o Estado na condição de garantidor das condutas privadas de seus servidores; b) limita os argumentos de defesa dos procuradores do Estado na defesa judicial dos interesses do Estado e c) abre oportunidade a ações de responsabilidade civil por danos materiais e morais do servidor em face do Estado por violação da esfera íntima de vida.
A priori normas disciplinares invasivas podem ter sua constitucionalidade questionada de forma repressiva, seja pela via de ação ou de exceção.
A única forma de preservar tais normas em harmonia com a Constituição é interpretar que as mesmas, apesar de positivadas, têm a natureza de um mero indicativo moral ou ético, similar à natureza das normas morais.
*Os autores: Flávio Cristiano Costa Oliveira é Mestre em Direito Constitucional, Especialista em Direito Empresarial e professor do Curso de Direito da FAESF e Sérgio Luis Rego Damasceno é Especialista em Direito Processual e Professor.
1. Em sua obra “ O que é justiça?”, o professor Hans Kelsen leciona que, geralmente, a conduta humana costuma ser regulada por normas de natureza jurídica, moral e religiosa. Ao desiderato deste opúsculo, deter-nos-emos às duas espécies primeiras.
A diferença entre as normas jurídicas e morais reside, fundamentalmente, na forma de criação e na natureza da sanção.
Assim, as normas jurídicas são regulamentos de comportamento emanados do Estado, a partir de um procedimento legislativo, estando, devidamente, positivadas. Ademais, a sanção cominada ao descumprimento de suas prescrições fica a cargo de órgãos e instituições estatais criados pela lei.
As normas de cunho moral, por seu turno, são produto da vivência social, do costume consagrado, daquilo que com o cotidiano e o tempo se convencionou por certo, errado, adequado, justo ou não. A sanção pela infringência de normas morais é promovida pelo próprio grupo social que a estabeleceu.
Estabelecidos os pontos de diferenciação entre normas jurídicas e normas morais, impende aos propósitos deste mister, breves considerações acerca das espécies de normas jurídicas.
2. Dentre as modalidades de normas jurídicas podemos destacar as normas jurídicas civis, penais e administrativas.
As normas jurídicas civis regulam as relações jurídicas de natureza privada das quais participam os sujeitos de direito. As normas jurídicas de direito penal regulam a relação jurídica penal estabelecida entre o Estado e o autor de condutas que ofendem ou expõem a risco bens ou direitos tutelados pelo ordenamento jurídico. As normas jurídicas administrativas regulam as relações jurídicas estabelecidas entre a Administração Pública, de um lado, e , do outro, seus servidores, administrados ou contratados. Ao estudo em questão, interessam as normas administrativas que regulam a relação jurídica estabelecida entre a Administração Pública e seus servidores, mais precisamente, as normas disciplinares.
À cada categoria de norma jurídica corresponde uma modalidade de responsabilidade, daí podermos falar em responsabilidade civil, penal e administrativa.
Responsabilidade significa a imputação, que se faz ao sujeito de direito, por o mesmo ter descumprido uma norma jurídica. As modalidades de responsabilidade, em tese, são independentes, entretanto encontram pontos de intersecção e influências devido várias circunstâncias, sejam por questões probatórias ou pela primazia da esfera de imputação penal.
O fato é que, tanto a conduta de um cidadão, quanto a conduta de um servidor público podem ensejar responsabilidade de natureza civil, penal e administrativa.
Exemplificando, cidadão que sem ser habilitado guia veículo automotor vindo a atropelar e vitimar pedestre. Civilmente terá que arcar com as despesas do funeral e indenizar materialmente e moralmente os parentes e dependentes da vítima. Penalmente, responderá ação penal pelo crime de homicídio culposo na modalidade de imperícia. Administrativamente, sofrerá as imposições administrativas que o Código de Trânsito Brasileiro dispuser.
Encontra-se , em situação similar, o servidor público que, estando no seu horário de expediente, vem a ofender a esfera de interesses de um usuário. Dependendo da amplitude da conduta, responderá civil, penal e administrativamente. Ao tema, interessa as modalidades de responsabilidade afetas aos servidores públicos.
Ocorre que existe diferença entre a responsabilidade administrativa aplicável ao cidadão e aquela aplicável ao servidor.
A responsabilidade administrativa do cidadão pode ser chamada de imprópria, uma vez que não existe relação jurídica de direito público entre ele e a Administração Pública.
Já a responsabilidade administrativa imputada ao servidor público pode ser qualificada como própria ou disciplinar, uma vez que existe relação jurídica de direito público entre o servidor e a Administração Pública.
A diferença entre as três modalidades de responsabilidades são: a) originariamente, as responsabilidades penal e civil são avaliadas por uma autoridade judicial, enquanto que, originariamente, a responsabilidade administrativa do servidor público é avaliada por autoridades administrativas, onde, apenas pelo princípio da inafastabilidade da jurisdição, poderá chegar ao crivo de uma autoridade judicial que, ainda assim, se limitará a analisar aspectos formais e não de mérito; b) as responsabilidades civil e penal são promovidas por meio de ações judiciais, no âmbito do processo judicial, enquanto que a responsabilidade administrativa do servidor público é promovida por meio de um processo sui generis de natureza administrativa, ao qual se procura aplicar princípios reguladores do processo judicial; c) as autoridades judiciárias são dotadas de amplas garantias que a protegem de ingerências internas ou externas no exercício da função jurisdicional, enquanto que as autoridades administrativas são desprovidas de mecanismos legais suficientes que a tornem incólumes de sofrerem interferências endógenas ou exógenas ao ambiente administrativo.
Neste momento da exposição, vale salientar que a incidência da responsabilidade administrativa própria dos servidores públicos enfrentam limitações em normas legais de natureza constitucional e infraconstitucional, queremos dizer, na Constituição Federal e no Código Civil Brasileiro.
3. O inciso X do artigo 5º da Constituição Federal Brasileira de promulgada em 1988, tutela sob o manto pétreo e imutável dos Direitos Fundamentais, o direito à inviolabilidade da intimidade e da vida íntima, seja o titular brasileiro, nato ou naturalizado, servidor público ou não, garantindo ainda o direito de indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
Seguindo a mesma esteira, o artigo 21 do Código Civil Brasileiro afirma que a vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.
Consoante tais normas, percebe-se que ao indivíduo, mesmo sendo um servidor público, é garantido um momento, um núcleo quase inatingível de natureza íntima e privada, onde ele não atua na qualidade de servidor público, mas como um cidadão comum, praticando atos e negócios jurídicos cujas conseqüências, positivas ou negativas, somente a ele podem ser imputadas.
Vários outros dispositivos legais ratificam tal entendimento.
O artigo 37, § 6º da Constituição Federal de 1988, estabelece como condição para o surgimento da responsabilidade civil objetiva do Estado, que o agente público tenha agido na qualidade de agente público. Logo, mutatis mutandis, o próprio Estado reconhece que existe um momento em que o agente público não age nesta qualidade, hipótese em que não cabe ao Estado ser garantidor desta atuação.
O próprio Código Penal Brasileiro, em seu artigo 331, em harmonia como nosso entendimento, somente resguarda a autoridade do servidor público quando o mesmo estiver no exercício de suas funções ou agir em razão dela.
Estando em sua esfera particular, intima ou privada de convivência, agindo em patamar de igualdade como os demais cidadãos, ao servidor público somente pode ser imputada responsabilidade civil, penal e administrativa imprópria( a mesma imputada ao cidadão comum), mas nunca administrativa própria ou disciplinar, pois não pode cometer infração administrativa quem não está no exercício da função pública e nem age em razão dela.
É completamente equivocada a idéia que certos servidores públicos têm, devido a essencialidade de suas atribuições, de que são servidores públicos durante as 24 horas do dia, pois:
a) o trabalho escravo, sem limite de horário e tarefas é incompatível com as Convenções e Tratados Internacionais e com a Constituição Federal de 1988;
b) o § 3º do artigo 39 da Constituição Federal prevê expressamente a aplicação de vários direitos trabalhistas aos ocupantes de cargos públicos, dentre eles a limitação da jornada de trabalho, direito ao repouso semanal remunerado, gozo de férias e licenças;
c) enquanto o servidor público não estiver no exercício de sua função, normas administrativas organizarão a prestação do serviço em regime de plantão para que sobre estes servidores recaia o dever jurídico de agir nas situações emergenciais e
d) o lazer e a convivência familiar merecem especial proteção do Estado.
4. A questão principal que nos motivou a publicar tal artigo, é que o Estado, no escopo de ter domínio sobre todos os aspectos da vida do servidor público, acaba fazendo aprovar normas estatutárias cujo conteúdo, as vezes, invade, insofismavelmente, a esfera de existência íntima e privada dos seus agentes administrativos.
Tais normas invasoras costumam ter o seguinte conteúdo: o servidor público deve manter conduta pública e privada compatível com a dignidade da função pública que exerce.
Quanto à exigência de que o servidor, no ambiente público, tenha conduta pública compatível com a dignidade de sua função, tal exigência não oferece grandes questionamentos.
O problema é quando o Estado utiliza-se dessa norma para justificar a instauração de procedimentos disciplinares administrativos, como sindicâncias investigatórias, sindicâncias administrativas ou processos administrativos disciplinares, com o espeque de adentrar e expor a vida íntima e privada dos seus servidores.
O fato do controle preventivo de constitucionalidade, exercido pelas Comissões de Constituição e Justiça dos órgãos legislativos e pelo veto do chefe do Poder Executivo, não ter funcionado, não significa que o controle repressivo de constitucionalidade não possa extirpar do ordenamento jurídico, pela via de ação ou de exceção, normas estatutárias disciplinares invasoras da vida privada e íntima dos servidores públicos.
Pela inteligência do escorço jurídico retrodito, é claro que normas disciplinares violadoras da intimidade do servidor público padecem de inconstitucionalidade material e podem perfeitamente ser retiradas da ordem jurídica em virtude da ofensa frontal a um dos direitos fundamentais, um dos pilares do Estado Democrático de Direito.
Assim, qualquer servidor público que estiver sofrendo ou ameaçado de sofrer violação em sua vida íntima e privada pela instauração de procedimento administrativo disciplinar, instaurado com fulcro em norma disciplinar invasiva e inconstitucional, poderá fazer uso do Mandado de Segurança, preventivo( visando trancamento) ou repressivo ( visando declaração incidental da inconstitucionalidade), que é o remédio, genuinamente brasileiro, utilizado na tutela de direito líquido e certo, não amparado por hábeas-corpus ou hábeas- data, impetrado perante a autoridade judiciária competente para julgar ato da autoridade administrativa ou política responsável pela instauração do indevido procedimento disciplinar.
5. Conclusões.
A responsabilidade administrativa própria de servidores públicos, somente tem respaldo jurídico, quando visar apurar a conduta do servidor que estiver no exercício da função pública ou ter agido em função desta.
A conduta íntima e privada do servidor, por expresso dispositivo constitucional, encontra-se imune à incidência de normas administrativas disciplinares.
A esfera privada do servidor somente permite a responsabilidade civil, penal e administrativa imprópria, uma vez que em tal âmbito, o servidor age em pé de igualdade com os demais cidadãos.
A invasão do aspecto íntimo da vida do servidor público possui os seguintes infortúnios: a) coloca, injustamente, o Estado na condição de garantidor das condutas privadas de seus servidores; b) limita os argumentos de defesa dos procuradores do Estado na defesa judicial dos interesses do Estado e c) abre oportunidade a ações de responsabilidade civil por danos materiais e morais do servidor em face do Estado por violação da esfera íntima de vida.
A priori normas disciplinares invasivas podem ter sua constitucionalidade questionada de forma repressiva, seja pela via de ação ou de exceção.
A única forma de preservar tais normas em harmonia com a Constituição é interpretar que as mesmas, apesar de positivadas, têm a natureza de um mero indicativo moral ou ético, similar à natureza das normas morais.
*Os autores: Flávio Cristiano Costa Oliveira é Mestre em Direito Constitucional, Especialista em Direito Empresarial e professor do Curso de Direito da FAESF e Sérgio Luis Rego Damasceno é Especialista em Direito Processual e Professor.
*** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do GP1
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