A noitada de Ronaldo, o Fenômeno, produziu uma consternação sem justificativa. Vamos imaginar que tudo seja verdade: um dos maiores ídolos de nosso futebol passou uma noite com três travestis e também consumiu cocaína. Agravante: tudo aconteceu num motel barato. E daí? Até uma adolescente de 15 anos recém-completos me explicou durante uma conversa em família: "É um problema dele, não? " Claro que é. (Vamos combinar que a cocaína é ilegal. Neste caso, cabe perguntar: quem vai chamar a polícia na próxima festa nos Jardins?) O episódio confirma o tratamento hipócrita reservado a nossos ídolos de origem pobre. Eles não podem se divertir exatamente como fazem colunáveis e celebridades desta e de outras terras. Precisam ser lembrados, sempre, que tem outro berço e outra formação. Serão diminuídos sempre que for possível. A mensagem é a seguinte: tudo bem que subiram na vida, mas esse sucesso não pode ficar de graça. Eles tem de pagar a conta, retribuir pelo que receberam, exibindo uma postura heróica e exemplar. Ronaldo não foi criticado pelo que fez. Mas pelo que representa um comportamento tipicamente mal agradecido. Será que ele não leu um único Manual de Boas Maneiras? Vivemos numa sociedade cada vez mais libertina, onde as drogas estão em todos os lugares e os trânsitos pela sexualidade há muito tempo deixaram de causar alvoroço. Para quem está na parte de cima, as trangressões são demonstrações de mérito, prova de espírito moderno, de tolerância com as diferenças, de coragem existencial, de profundidade psicanalítica e assim por diante. Para quem veio debaixo, esse mesmo comportamento apenas recorda a incapacidade dos pobres, desnutridos e mal-educados para adquirir os bons hábitos da turma de cima. Por que fazer um escândalo em torno de Ronaldinho? Vivemos no país onde um gênio autêntico chamado Garrincha, eterno mulherengo, alcóolatra, morreu nas portas da miséria, abandonado por falsos amigos e protetores. Onde se celebra Pelé, genio dos gramados mas cidadão e pai com tantas omissões, esforçado simulador de bom comportamento. Ronaldo mostrou que era um fenômeno, mesmo, quando entrou na área de outra classe social para casar-se num castelo com Daniela Cicarelli. Quando o casamento terminou, houve quem criticasse sua indisposição para mudar o estilo de vida. Imperdoável, não? O tratamento dispensado a Ronaldinho é um espetáculo sobre cultura e preconceito. Ajuda a revelar a crueldade que acompanha os brasileiros que vieram ao mundo num universo de carências, dificuldades e más companhias. Seguem perseguidos pelas marcas de um berço nada esplêndido ainda que se mostrem capazes de embolsar U$ 32 milhões por ano. Paulo Moreira Leite é jornalista
*** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do GP1
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