Imagens captadas por drones da Prefeitura de São Paulo mostram que a transferência da Cracolândia para a Praça Princesa Isabel, ocorrida na madrugada de sábado, 19, é resultado de uma ação planejada pelo tráfico há pelo menos um mês. Boletins internos do programa Redenção, de atendimento aos usuários, apontaram um aumento significativo no número de barracas montadas na praça de fevereiro para cá, antes mesmo da chegada dos usuários. No dia 14 do mês passado, eram 206 barracas e na segunda-feira, 21, 250.
O mesmo monitoramento também revela que apenas com a desocupação da Cracolândia original - entre as alamedas Helvétia e Dino Bueno - a quantidade de pessoas na praça cresceu, o que reforça a tese de que o tráfico preparava o local com antecedência. Na média, em fevereiro, a Prefeitura contabilizou menos de 80 moradores de rua fixados no local. No dia 21 de março, foram identificados 292.
A mudança em ambos os cenários é, segundo a gestão Ricardo Nunes (MDB), uma resposta do crime organizado ao trabalho discreto e gradual feito pelo Município em parceria com a Polícia Civil. Desde junho de 2021, quando a Operação Caronte (em referência ao barqueiro que, na mitologia grega, carrega mortos-vivos) começou a identificar pequenos traficantes por meio de câmeras escondidas e a Prefeitura passou a coibir a montagem de barracas na região, 92 deles foram presos.
Um relatório da operação obtido pelo Estadão mostra que sem as barracas os usuários que atuam como traficantes ficaram mais expostos, facilitando o trabalho da polícia. Já na Praça Princesa Isabel, estruturas em madeira escondem a venda de drogas e dificultam tanto a ação policial como a assistencial. Os moradores de rua que viviam antes no local se misturam agora aos dependentes químicos e pequenos traficantes.
Segundo o Estadão apurou, a visita do governador João Doria (PSDB) a obras do novo Hospital da Mulher, em construção na região, acelerou a transferência na madrugada de sábado depois que um boato sobre uma possível operação policial se espalhou entre os frequentadores da Cracolândia original. A futura unidade fica no cruzamento da Avenida Rio Branco com a Rua Helvétia.
Diferentemente do que possa parecer, a avaliação interna na Prefeitura é que o trabalho na Cracolândia ficou agora mais difícil. Para remover as barracas da praça será necessário uma ação mais efetiva da polícia e chamativa do ponto de vista político - o que Nunes quer evitar. Segundo o prefeito, equipes de zeladoria e assistência já trabalhavam no local removendo barracas vazias de forma pontual, mas agora será preciso "rediscutir estratégias".
As barracas, lonas e tendas usadas pelos traficantes para disfarçar o comércio de drogas – paisagem comum na região da Luz e que migrou para a Praça Princesa Isabel no último final de semana – apagaram os sinais da revitalização do local promovida pela Prefeitura de São Paulo em 2018 ao custo de R$ 2 milhões. A pista de corrida e caminhada abriga colchões e camas improvisadas; aparelhos de ginástica são vigas para as tendas e as mesas de piquenique recebem cachimbos de crack.
As instalações mais comuns da praça são barracos improvisados, com cordas e fios pendurados nas árvores para sustentarem lençóis e colchas; tapumes de madeira se escoram uns nos outros. Restos de móveis e de caixotes, lonas de plásticos também ajudam a forrar as paredes. As construções permitem que uma pessoa fique de pé, não são baixinhas, mas também existem inúmeras barracas de camping.
A parte central da praça, mais longe do olhar, é ocupada pelo tráfico de drogas. Ali está o centro do fluxo, concentração de usuários de drogas. Ali, prevalecem as lonas pretas e as tendas. Para burlar o policiamento, são usados até guarda-sóis. Caixotes com pedras de crack ficam a céu aberto e os traficantes usam lâminas para cortar e vendas as pedras.
Novo fluxo
Comerciantes estimam que o movimento aumentou 50% na praça nos últimos meses. A Polícia Civil estima que 1/3 do movimento da antiga Cracolândia mudou de endereço, o que significa mais ou menos 200 pessoas. Traficantes e usuários de substâncias psicoativas convivem com famílias que perderam o emprego e acabaram vivendo nas ruas.
O comércio já sofre os primeiros impactos. Duas lojas de venda de automóveis reclamam que as visitas caíram nesta semana. O proprietário de um salão de cabeleireiro coça a cabeça para arrumar formas de recuperar o investimento de R$ 80 mil no local. Muitas pessoas não se sentem seguras para contar o que vivem. “Você vem, faz seu trabalho e vai embora. Nós ficamos aqui”, diz a recepcionista do Hotel Ourinhos encerrando a entrevista na primeira pergunta.
Julio Chaves, nome fictício, que trabalha no local há cinco anos, conta que o seu negócio de embalagens não sofreu muito impacto porque seu foco é o mercado corporativo. Mas ele nem espera a entrada de algum cliente depois que o tráfico ocupou de vez a praça. Ele se sente inseguro a ponto de pensar em trocar de endereço.
Não é a primeira vez que a praça é tomada pelo fluxo. Em maio de 2017, uma megaoperação policial com 900 agentes no “quadrilátero da droga”, formado pela Alameda Dino Bueno com a Rua Helvétia, expulsou usuários e traficantes do antigo fluxo. Com a ação, os dependentes químicos se instalaram na Princesa Isabel. Naquele momento, o local também foi tomado por tendas e barracas.
Em maio de 2018, um ano depois, a Prefeitura revitalizou o espaço, com bancos novos, pista de corrida, quadra poliesportiva e até o espaço Pet. As obras, feitas por uma empresa privada que foi responsável pela manutenção do lugar por 12 meses, duraram cerca de três meses a custo de R$ 2 milhões. Julio se lembra de quando as coisas eram assim. “Cinco anos atrás, nós tínhamos uma feira de artesanato. As pessoas vinham correr aqui”, recorda-se.
Hoje, a pista de corrida e caminhada abriga colchões, camas improvisadas e dezenas de tendas e barracas. Aparelhos de ginástica são suporte para as tendas. O uso de drogas acontece também nas mesinhas pensadas para piquenique. Após cinco anos, não há mais sinais do cachorródromo.
Ver todos os comentários | 0 |