O Brasil tem o Legislativo que mais alterou a Constituição em comparação com outras 11 democracias ocidentais. Com regras menos rigorosas para mexer na principal norma do País, a Carta Magna já foi modificada 131 vezes em 34 anos de promulgação. Os atuais deputados e senadores vão concluir seus mandatos em dezembro com um recorde: foram os que mais mudaram a Constituição desde 1988. Somente nos últimos três anos e oito meses, foram feitas 26 alterações.
Em votações que duram menos de um mês e com pouco debate, os congressistas que tentam a reeleição em outubro emendaram a Constituição para aumentar gastos, mexer no sistema previdenciário e conceder benefícios para diversas categorias. Estudo feito pelo consultor do Senado Clay Souza e Teles a pedido do Estadão mostra que os políticos brasileiros têm mais facilidade para alterar as regras do que colegas de outros 11 países.
“Há um risco de banalização do texto constitucional e instabilidade jurídica que gera repulsa a investimentos no País. Essas mudanças transformam a Constituição em mero pedaço de papel, e não na Lei Magna”, disse o cientista político Leandro Consentino, do Insper. A avaliação é compartilhada também por constituintes.
Nos Estados Unidos, por exemplo, onde a Constituição é do século 18, os parlamentares alteraram o texto apenas 27 vezes ao longo de 233 anos. Chile (60 desde 1980), Argentina (7 desde 1853), Alemanha (60 desde 1949) e Portugal (7 desde 1978) também são mais cautelosos com as alterações. Os parlamentares mexicanos reformaram sua Constituição 251 vezes, mas num período de 105 anos. A Carta é de 1917.
A explicação para o Brasil mexer tanto na Constituição está no trâmite. Para uma emenda ser aprovada, é preciso o consentimento de 308 deputados e 49 senadores numa votação que ocorre em duas etapas na Câmara e no Senado. O Congresso não precisa consultar nenhum órgão para alterar a Carta e são os próprios parlamentares que promulgam as mudanças. A partir desse ato a regra começa a valer. O presidente da República não pode vetar as alterações.
Em comparação com outros 11 países democráticos, ou o quórum exigido para aprovação das mudanças é maior ou o rito é mais demorado. Mesmo onde o Congresso também tem o poder de alterar a Constituição sozinho, a restrição é maior. No Peru, são necessários dois terços do Congresso para aprovar uma emenda constitucional. Mas a mudança deve ser proposta numa legislatura e aprovada na seguinte.
Na Colômbia, as mudanças só passam após aprovação por referendo popular e a votação ocorre na legislatura seguinte. Na Alemanha, a aprovação depende do Conselho Federal, composto por representantes dos Estados, além do Parlamento. O quórum exigido é de dois terços dos votos. No Brasil, são três quintos.
Na teoria, as normas da Constituição tratam de temas gerais como o respeito a direitos e garantias fundamentais e organização do Estado. Na prática, porém, a Carta de 1988 possui diversos assuntos que não são classificados tipicamente como “constitucionais”. O artigo 242, por exemplo, estabelece que o Colégio Pedro II, localizado na cidade do Rio de Janeiro, será mantido pela administração federal.
Atribuição
Deputados e senadores têm optado por emendar a Constituição mesmo quando o caminho poderia ser outro. Dessa forma, consegue-se evitar o veto presidencial, garantir segurança jurídica e, até mesmo, mexer em temas que não são de sua competência, mas da União, Estados e municípios. É o caso do recém-aprovado piso salarial para os enfermeiros. A criação de despesa é uma atribuição do Executivo, mas os políticos tornaram o piso uma medida constitucional. Agora, o governo tem de cumprir a Constituição e instituir a nova regra.
As mudanças feitas na Constituição pela legislatura atual envolvem até mesmo temas como desoneração de igrejas e propostas de interesse eleitoral do governo e dos parlamentares. É o caso das modificações no teto de gastos. Desde que o limite das despesas foi instituído, o Congresso alterou a Constituição seis vezes para driblar a regra fiscal. Em 2021, o teto aumentou para abrigar o fundo eleitoral e o orçamento secreto. Neste ano, a mais recente proposta foi batizada de “PEC Kamikaze” e turbinou benefícios sociais às vésperas das eleições.
Vice-presidente da Assembleia Nacional Constituinte, o ex-senador Mauro Benevides admitiu que os constituintes cederam a pressões de vários grupos que fizeram lobby em Brasília na época, o que deixou a Carta de 1988 ampla demais. Mas destacou que isso não justifica a quantidade recorde de alterações. “Não se pode enveredar por uma trilha de irresponsabilidade que comprometa exageradamente o Tesouro Nacional. Exorbitar isso é algo que não se ajusta à dignidade do exercício da cadeira de deputado e senador”, afirmou.
No Brasil, o poder de pautar propostas que alteram a Constituição é exclusivo dos presidentes da Câmara e do Senado. O deputado Arthur Lira (Progressistas-AL) promoveu mudanças que aceleram a tramitação. O senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG) levou as propostas diretamente para votação no plenário, pulando o debate na Comissão de Constituição e Justiça.
Assim, na Câmara, uma PEC que limita recursos no Superior Tribunal de Justiça foi aprovada em menos de um mês. No Senado, a “PEC Kamikaze” foi confirmada um dia depois da apresentação do relatório. Na maioria dos países as mudanças levam anos. “O resumo da ópera é o protagonismo do Legislativo provocado por uma crise, principalmente política, em relação aos chefes do governo”, disse o analista Neuriberg Dias, do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap).
Este ano já é o que mais registrou mudanças na Carta desde 1988, quando o então presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães, comandou a promulgação do documento. Para Consentino, o Congresso de hoje precisa assumir a responsabilidade. “Não costumo culpar o Ulysses, a responsabilidade cai muito mais no nosso colo do que em outro lugar.”
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