Uma manobra orçamentária que tem aval do governo Jair Bolsonaro (PL) e apoio no Congresso vai permitir repasses de R$ 3,3 bilhões em emendas parlamentares durante a campanha deste ano. Para driblar a lei eleitoral, que veda a liberação de recursos de emendas ao Orçamento nos três meses que antecedem o dia da votação, o governo pretende irrigar os redutos políticos utilizando as chamadas “transferências especiais”, prática apelidada de “cheque em branco”.
No modelo tradicional de pagamento das emendas, os recursos só saem do caixa do Executivo quando o serviço está concluído. Se uma obra pública fica pronta dentro do período de três meses antes das eleições, o dinheiro não pode ser liberado. Já pelas “transferências especiais”, a verba sai do caixa federal sem necessidade de esperar que a obra seja concluída. Assim, os repasses são feitos a governos estaduais e prefeituras antes dos três meses e ficam disponíveis para pagamento no momento em que as autoridades quiserem, sem a trava da lei eleitoral.
A legislação proíbe o governo de pagar emendas de 2 de julho, quando começa o período conhecido como “defeso eleitoral”, até 2 de outubro, data do primeiro turno da eleição. A exceção é para obras e serviços em andamento e com cronograma prefixado, além de situações de calamidade
A estratégia em curso deve garantir um repasse antecipado das transferências especiais para que o gasto ocorra no meio da campanha. Esse tipo de emenda foi pago pela primeira vez em 2020, quando somou R$ 621 milhões. A adesão aumentou para R$ 2 bilhões em 2021 e vai atingir o recorde de R$ 3,3 bilhões neste ano.
Brecha
Um estudo da consultoria de Orçamento da Câmara, preparado a pedido de deputados, enquadra o “cheque em branco orçamentário” na mesma proibição imposta pela lei eleitoral às transferências voluntárias da União, mas aponta uma brecha que só é possível com esse tipo de emenda: o governo pode repassar o recurso antes do período de “defeso”. Prefeitos e governadores, por sua vez, podem deixar o dinheiro no caixa para gastar durante a campanha, conforme a indicação dos parlamentares.
“O procedimento, ao que se percebe, parece contrariar o propósito da regra eleitoral que é o de evitar a utilização eleitoreira de recursos transferidos”, diz o estudo. “Aparentemente, a nova modalidade de transferência aproveita-se de uma brecha na redação da lei eleitoral.” Para os consultores, “a situação tem potencial de afetar a igualdade eleitoral”, aumentando a importância da fiscalização desses recursos.
Parlamentares justificam o uso da transferência especial pela falta de burocracia e o benefício à população. “O recurso chega mais rápido. Se você coloca no ministério para fazer asfalto, vai demorar dois anos para sair. Com a transferência especial, o dinheiro é na conta do município e o prefeito escolhe onde usar. É ótima alternativa”, afirmou o deputado Darci de Matos (PSD-SC), que indicou o valor máximo permitido, R$ 8,8 milhões, em emendas desse modelo para municípios catarinenses. “O entendimento é de que o governo pode pagar emendas até três meses antes da eleição e o município pode tocar as obras. As obras não cessam.”
Indicação
O ano eleitoral provocou pressão pelo pagamento dos recursos antes da campanha, a tempo de a transferência ser usada como propaganda política por quem apadrinhou os repasses. “Precisamos disso no máximo até maio. Tem que dar início às obras. Não adianta o recurso ir para a prefeitura e depois a lei eleitoral proibir”, disse o deputado Mauro Lopes (MDB-MG), que indicou outros R$ 8,8 milhões para municípios mineiros. “O prefeito começa a obra por indicação do parlamentar.”
Especialistas e órgãos de controle, no entanto, veem brecha para corrupção e falta de transparência. O dinheiro não é carimbado para nenhuma área específica e pode ser gasto em qualquer serviço público. A fiscalização cabe às repartições locais, mas a falta de “carimbo” dificulta o rastreio, na opinião de analistas.
Procurados, a Secretaria de Governo e o Ministério da Economia confirmaram que seguirão o mesmo entendimento do Congresso, ou seja, as emendas especiais se encaixam na proibição eleitoral, mas podem ser repassadas com antecedência. Assim, Estados e municípios podem gastar os recursos durante a campanha.
O governo pretende desembolsar a verba em duas rodadas, uma no fim de maio e outra no fim de junho, abastecendo redutos de congressistas antes da eleição. Somando todos os tipos de emendas, os recursos com a digital dos parlamentares somarão R$ 35,6 bilhões em 2022. Como mostrou o Estadão/Broadcast, o governo autorizou um pagamento recorde, de R$ 25 bilhões, antes da eleição. A lei eleitoral é um dos impasses para essas transferências, o que tem motivado a articulação no Congresso para usar brechas na regra.
Para entender:
Como funcionam as modalidades de repasses
Emenda individual: é uma indicação que cada deputado ou senador tem direito de fazer ao Orçamento, quer ele seja da base ou da oposição. Desde 2015, o governo federal é obrigado a executar essas despesas. Atualmente, cada parlamentar pode indicar até R$ 16 milhões.
Emenda de bancada: parlamentares também têm direito de fazer indicações em conjunto com a bancada de seus Estados. Cada uma das 27 bancadas pode definir como o governo deve gastar R$ 213 milhões em obras e serviços. O pagamento também é obrigatório.
Emenda de relator: permite ao relator-geral do Orçamento definir, sem transparência, onde serão alocados bilhões além das emendas individuais e de bancada. É o mecanismo utilizado pelo governo no orçamento secreto.
Transferência especial (emenda ‘cheque em branco’): mecanismo de transferência das emendas individuais sem que o parlamentar defina como deve ser usado o dinheiro. Assim, prefeituras e governos estaduais têm liberdade para gastar a verba.
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