Tucano histórico, o atual diretor da SP Negócios, Aloysio Nunes Ferreira, foi um dos líderes tradicionais do PSDB procurados pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em aceno ao centro neste ano eleitoral. Em entrevista ao Estadão, Aloysio defendeu como prioridade impedir a reeleição do presidente Jair Bolsonaro.
Ex-senador e ex-ministro da Justiça e das Relações Exteriores, Aloysio disse ver potencial na candidatura do governador João Doria ao Palácio do Planalto, mas destacou que, se o tucano “não decolar”, não há opção viável na “terceira via”.
Ao analisar a crise interna do partido – uma ala contrária à candidatura própria à Presidência tem pressionado a pré-campanha de Doria –, o ex-chanceler afirmou que o PSDB “não é mais uma referência nacional”.
O ex-presidente Lula teve uma série de encontros com líderes históricos do PSDB – o sr. foi um deles. Qual é o simbolismo desses encontros?
Durante o processo de impeachment (de Dilma Rousseff), o antipetismo acabou se transformando em uma segunda natureza do PSDB. Isso nos fez andar em muito má companhia. Agora, diante do desastre que foi a eleição do Bolsonaro – um desastre até previsível – e do seu governo de destruição sistemática, vem a ideia de que é preciso retomar um diálogo que houve ao longo do tempo com forças de esquerda, como o PT. Talvez o PT tenha sido anti-PSDB, e a campanha Fora FHC é um exemplo disso, mas nós, do PSDB, antes desse processo de radicalização, sempre tivemos a compreensão da importância do PT na vida política brasileira como expressão do movimento popular. Ainda que não houvesse um papel escrito, houve convergência em muitas coisas importantes.
Quais, por exemplo?
No tema dos direitos humanos houve toda uma legislação que nós aprovamos. Lei da Imigração, Comissão da Verdade, Lei de Proteção de Dados, Marco Civil da Internet. Houve um diálogo das forças democráticas, e não só PT e PSDB. O Código Florestal foi um mutirão envolvendo gente do MDB, do PT, do PSDB e do PFL. Mesmo na política externa, fui presidente da Comissão de Relações Exteriores (do Senado), e meu vice era o Jorge Viana (do PT), que fazia constantemente a ligação entre a pauta do plenário e da comissão. A luta contra a pobreza extrema e a transferência de renda. Tudo isso foi feito com uma colaboração não formalizada, mas existente na vida real. São duas vertentes da social-democracia brasileira: uma mais à esquerda, representada pelo PT, e uma mais direita, cada uma com seu sistema de alianças. Aí chega Bolsonaro e destrói isso. Nesse processo de radicalização, que vem de antes do impeachment, uma parte do nosso eleitorado foi embora. Perdemos um componente importante dos nossos eleitores, de uma direita civilizada e moderada.
O antipetismo foi uma “muleta” para o PSDB? Esse sentimento ajudou a eleger os únicos governadores do partido em 2018...
O PSDB não é mais uma referência nacional como foi. Na época em que o PSDB teve posições fortes na eleição nacional, com Fernando Henrique, (José) Serra e (Geraldo) Alckmin, o partido era uma referência que se opunha ao PT no campo eleitoral. O PSDB trazia consigo um eleitorado mais liberal e progressista, e também de direita conservador, mas do campo democrático. Isso foi explicitado na chapa FHC-Marco Maciel.
O governador João Doria representou a ascensão desse “extremismo” dentro do PSDB?
A eleição do Doria surfou nessa onda no movimento “Bolsodoria” no segundo turno (da disputa à Presidência em 2018), que foi entre Bolsonaro e (Fernando) Haddad, e dele contra o Márcio França (do PSB, em São Paulo). A campanha do Doria entrou na mesma corrente que votava no Bolsonaro e forçou um pouco a mão ao apresentar o Márcio França como comunista. O Márcio França é tão comunista quanto eu sou hare krishna. Mas ele (Doria) se redimiu depois com uma oposição consistente e corajosa, como governador, ao Bolsonaro.
O Doria deve levar sua candidatura até o fim, independentemente das perspectivas eleitorais?
Se você não tem uma candidatura forte, ou uma corrente política com um mínimo de coesão interna, cada um vai buscar a sua sobrevivência. A vida partidária está muito desorganizada, caótica, em razão de vários fatores, como o Fundo Partidário gigantesco, as emendas de bancadas e a perda da agenda presidencial diante do Congresso. Tudo isso é resultado da desorganização política do Brasil. Hoje, quem não tem uma candidatura forte de partida, casos de Bolsonaro e Lula, nem é apoiado em um partido minimamente coeso, vê as pessoas tentadas a buscar a própria sobrevivência. É salve-se quem puder. Por isso vamos ter nesta campanha a generalização dos dois palanques, como ocorreu em São Paulo na reeleição do Fernando Henrique. Um era Fernando Henrique e (Paulo) Maluf, e o outro, Fernando Henrique e (Mario) Covas, para desespero do Andrea Matarazzo, que era coordenador da campanha do FHC. Esse movimento é generalizado. Muitos vão ressuscitar o “voto camarão”, quando muita gente votava na chapa completa, mas não para Presidência da República.
Quando o sr. e outros quadros históricos do PSDB se encontram com o ex-presidente Lula e estabelecem com ele um diálogo público não passam um sinal de que a pré-candidatura de Doria é vista no partido como pouco viável?
Em 2018 não houve, da parte do Fernando Haddad, nem um gesto semelhante ao que o Lula está fazendo hoje. O impeachment estava recente e havia muitos ressentimentos. O Lula estava preso. 2018 foi uma eleição muito aberta, tanto que foi eleito um sujeito que ninguém imaginava que podia ser presidente da República. O PSDB estava desbaratado por conta da Lava Jato. O (Michel) Temer estava acuado pelo lavajatismo. O Ciro era o mesmo. Ainda é hoje e será amanhã. Não houve na época uma consciência clara do perigo do Bolsonaro. Essa movimentação do Lula hoje é absolutamente legítima. É da natureza dele. O extremista dessa campanha é o Bolsonaro, e é ele que temos que derrotar. Temos que tentar tirá-lo inclusive do segundo turno.
O sr. acredita na viabilidade da candidatura do governador de São Paulo?
O Doria vai crescer nas pesquisas. Ele faz um bom governo. Curiosamente, muita gente que detesta o Doria por razões quase antropológicas – a identificação dele como elite paulista no imaginário – reconhece o governo dele, que teve bons resultados em todos os índices, inclusive nesse que é decisivo para o desgaste do Bolsonaro, que é a vacina. Doria tem um excelente candidato a governador, que é o Rodrigo Garcia.
A direção do PSDB deve se posicionar contra esse movimento público de dissidência contra a candidatura de Doria?
Não adianta tomar medidas administrativas contra isso. Há um descontentamento com o Doria devido aos atritos que ele criou e ao seu voluntarismo na luta interna do PSDB, como essa obsessão de expulsar o (deputado) Aécio (Neves). As prévias são o resultado da dissolução orgânica do PSDB e da incapacidade de ter mecanismos internos de composição para escolher um candidato. Por isso se abandonou o terreno natural, que é a convenção nacional. Tudo isso gerou ressentimentos. Mas o Doria tem feito gestos para aproximar as pessoas.
O PSDB corre o risco de não alcançar a cláusula de barreira?
Não. O PSDB tem condições de ultrapassar com folga.
Então por que buscar uma federação partidária com o Cidadania?
Essa união interessa ao Doria, porque é o primeiro gesto para escapar daquilo que pesa mais negativamente sobre a candidatura dele hoje do que as pesquisas de intenção de voto: o isolamento político. Já para o Cidadania, a federação é uma questão de sobrevivência. A hesitação do Cidadania, aliás, é um sinal preocupante de isolamento.
A terceira via na disputa ao Palácio do Planalto tem viabilidade?
Muito difícil. A única hipótese de a terceira via vingar é tirando votos do Bolsonaro. O voto do Lula está muito consolidado. Acho difícil alguém desistir para apoiar o outro. Doria e Ciro não desistem. O (Sérgio) Moro talvez.
Mas como enxerga a candidatura de Sérgio Moro? Ele é uma alternativa a Bolsonaro?
Não. Moro é o bolsonarismo do B. Qual credencial ele tem para ser presidente da República? É um juiz de primeira instância, com sentenças altamente contestadas e que se valeu do seu cargo para galgar posições políticas. A plataforma dele foi para a conquista do poder. Não sabe nada do Brasil. É uma coisa fake, mas é um abrigo para o bolsonarismo desiludido.
Como avalia a provável escolha de Geraldo Alckmin como vice de Lula?
É um movimento correto do ponto de vista político, tanto da parte do Geraldo Alckmin quanto do Lula. O Lula sabe que precisa caminhar para o centro. É por onde ele tem que crescer para ganhar no primeiro turno. Para isso, há essa tentativa de ter o apoio de um grande partido nacional estruturado que é o PSD.
Como vê a possibilidade de Eduardo Leite, governador do Rio Grande do Sul, migrar do PSDB para o PSD para disputar o Planalto?
Vejo com certo constrangimento. Se ele disputou as prévias (do PSDB) e aceitou as regras, deveria se sentir moralmente obrigado a acatar o resultado. Eduardo é um quadro que tem futuro, mas esse caminho o desqualifica.
Qual a avaliação do sr. sobre a Operação Lava Jato?
Teria sido positivo se ela tivesse sido conduzida por magistrados e procuradores respeitosos aos direitos dos acusados. Mas, do jeito que ela transcorreu, foi a destruição da reputação de muitos políticos e pessoas respeitáveis e empresas mediante procedimentos que se revelaram ilegítimos.
Que leitura faz da viagem de Bolsonaro à Rússia neste momento?
A viagem presidencial à Rússia está programada há bastante tempo. Isso não se resolve de um dia para o outro. Isso vem antes de agudizar a crise com a Ucrânia. Somos parceiros da Rússia nos Brics. Cancelar essa viagem agora seria simplesmente uma adesão à tese dos Estados Unidos e da Otan. Tem que manter a viagem.
Qual o saldo do governo Bolsonaro para as relações internacionais?
O isolamento do Brasil. O afastamento de uma tradição diplomática que foi construída ao longo dos tempos. O Brasil tinha o perfil internacional de um país pacífico e que preza a negociação. Afastamos nossos vizinhos da América do Sul. O Brasil cometeu o erro brutal de agarrar no (Donald) Trump, e continua agarrado a uma corrente internacional de extrema direita pela militância dos filhos do presidente. O Brasil perdeu sua autoridade e o capital de confiança, o que demora muito para construir e semanas para destruir.
O sr. atuou como motorista de Carlos Marighella. Como avalia o filme sobre ele?
Eu dirigi o automóvel algumas vezes, mas ele não tinha um motorista só. Marighella era itinerante. Ia trocando de carros e interlocutores. Viajei com ele uma vez para a Praia Grande. Não vi o filme porque essas coisas me fazem mal. Não vi Batismo de Sangue (filme de Helvécio Ratton sobre a trajetória de Frei Tito de Alencar). Vi algumas polêmicas sobre negritude, mas esse não era um tema do Marighella. O que importava era a luta de classe, não racial. É um filme de ação, e o resultado dessa ação foi trágico. Essa opção política da qual eu participei foi trágica e não tinha a menor perspectiva de ter sucesso.
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