O presidente Jair Bolsonaro apresentou nesta segunda-feira, 29, uma versão sobre a morte de um desaparecido político durante o regime militar que não tem respaldo em informações oficiais. Bolsonaro afirmou inicialmente que tinha ciência de como Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, integrante do grupo Ação Popular (AP), “desapareceu no período militar”. Depois, disse que o militante – pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Santa Cruz – foi morto por correligionários na década de 1970. A declaração contraria uma lei vigente e uma decisão judicial que reconhecem a responsabilidade da União no sequestro e desaparecimento do então estudante de direito em 1974.
As afirmações desencadearam fortes críticas de entidades da sociedade civil e personalidades ligadas aos direitos humanos e ao processo de redemocratização do País. Felipe Santa Cruz informou que vai ao Supremo Tribunal Federal pedir que Bolsonaro diga o que sabe sobre o desaparecimento do seu pai.
O próprio governo federal vincula a morte do ex-militante da AP ao “Estado brasileiro”. O atestado de óbito de Oliveira foi expedido na semana passada pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, ligada ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Diz o documento que ele morreu provavelmente em 23 de fevereiro de 1974, no Rio, “de causa não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro, no contexto da perseguição sistemática e generalizada à população identificada como opositora política ao regime ditatorial de 1964 a 1985”.
Atestados como o de Oliveira serão entregues em agosto às famílias de vários desaparecidos políticos durante a ditadura.
Bolsonaro questionou a atuação da OAB e atacou Santa Cruz ao falar nesta segunda de manhã das investigações sobre Adélio Bispo, que lhe desferiu uma facada durante a campanha eleitoral do ano passado. Adélio foi considerado inimputável pela Justiça por transtorno mental. O presidente não recorreu.
“Por que a OAB impediu que a Polícia Federal entrasse no telefone de um dos caríssimos advogados (de Adélio)? Qual a intenção da OAB? Quem é essa OAB?”, afirmou Bolsonaro, para quem Oliveira participava do “grupo terrorista mais sanguinário que tinha”. “Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto para ele. Ele não vai querer ouvir a verdade.”
À tarde, em uma transmissão ao vivo nas redes sociais no Palácio do Planalto, enquanto um homem cortava seu cabelo, o presidente voltou ao assunto e negou que o então militante da AP tenha sido morto pelas Forças Armadas. “Ninguém duvida que havia ‘justiçamentos’ de pessoas da própria esquerda. Quando desconfiavam de alguém, simplesmente executavam”, afirmou. “Essa é a minha versão, do contato que tive com quem participou ativamente do nosso lado naquele momento para evitar que o Brasil se transformasse numa Cuba.”
O presidente da OAB respondeu, por meio de nota, que as declarações do presidente demonstram “crueldade e falta de empatia”. “O mandatário da República deixa patente seu desconhecimento sobre a diferença entre público e privado, demonstrando mais uma vez traços de caráter graves em um governante: a crueldade e a falta de empatia. É de se estranhar tal comportamento em um homem que se diz cristão”, diz Santa Cruz na nota.
“Lamentavelmente, temos um presidente que trata a perda de um pai como se fosse assunto corriqueiro – e debocha do assassinato de um jovem aos 26 anos (…) Meu pai era da juventude católica de Pernambuco, funcionário público, casado, aluno de Direito. Minha avó acaba de falecer, aos 105 anos, sem saber como o filho foi assassinado. Se o presidente sabe, por ‘vivência’, tanto sobre o presente caso quanto com relação aos de todos os demais ‘desaparecidos’, nossas famílias querem saber.”
Desaparecido
O livro-relatório Direito à verdade e à Justiça diz que documento do então Ministério da Aeronáutica informou, em 1978, que Oliveira tinha desaparecido em 22 de fevereiro de 1974 e teria sido morto pelo DOI-Codi. Em 2012, no livro Memórias de uma guerra suja, o ex-delegado do Dops Cláudio Guerra sustentou que o corpo dele foi incinerado no forno de uma usina de açúcar.
Entre outros ex-integrantes de destaque da Ação Popular estão o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho (que morreu em 1997), e o senador José Serra (PSDB-SP).
No dia 19, ao receber jornalistas estrangeiros para um café da manhã, Bolsonaro usou informação falsa para atacar a jornalista Miriam Leitão. Afirmou, equivocadamente, que ela integrou a luta armada contra a ditadura. Disse ainda que Miriam mente ao relatar abusos e tortura na prisão.
Justiça condenou a União; militares reconhecem culpa
A Justiça Federal decidiu que a União foi responsável pelo “sequestro, tortura, assassinato e ocultamento do corpo de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira”, assim como considerou “injuriosas” as insinuações da Advocacia da União de que, talvez, o militante da Ação Popular (AP) estivesse vivo.
O juiz José Carlos Garcia, autor da sentença de 7 de maio de 1997, mandou que as expressões usadas pela advocacia fossem “riscadas dos autos, por atentatórias à dignidade do autor (Felipe Santa Cruz, atual presidente da OAB) e à memória de seu pai”. O processo sobre o desaparecimento do ativista político foi julgado pela 10.ª Vara Federal do Rio. A decisão foi confirmada depois pelas instâncias superiores e transitou em julgado.
Anexado ao processo está ofício de 5 de fevereiro de 1993, enviado pelo então ministro da Marinha, almirante Ivan da Silveira Serpa, ao ministro da Justiça, Maurício Corrêa – à época da sentença, Corrêa presidia o Supremo Tribunal Federal – no qual a Marinha informava que Santa Cruz fora preso em 23 de fevereiro de 1974 e que desaparecera em companhia de outro militante da AP, Eduardo Collier Filho.
Depois da Marinha, foi a vez de o ex-sargento Marival Chaves, que trabalhou no Centro de Informações do Exército (CIE) e no Destacamento de Operações de Informações (DOI), do 2.º Exército, dizer que Oliveira havia sido sequestrado e morto em uma operação contra a AP.
A operação começara meses antes. A tenente Beatriz Martins, a agente Neuza do DOI do 2.º Exército, confirmou ter participado da ação contra a AP, inclusive prendendo em setembro de 1973 o ex-deputado estadual Paulo Stuart Wright. Além dela, o sargento do Exército Massayuki Gushiken, que trabalhou no DOI, afirmou ter visto Wright na grade de presos do DOI e leu depoimento do preso. Wright ficou uma semana no DOI antes que “desaparecessem com ele”.
Nenhum documento militar registra, nem mesmo o Projeto Orvil, livro feito pelo Exército sobre o combate às organizações de esquerda, a história contada por Jair Bolsonaro sobre a morte de Oliveira.
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