Depois de um show dos tropicalistas, João Gilberto foi ao camarim. Caetano Velosonarrou o episódio numa entrevista, lembrando que, na ocasião, ficou apreensivo. Temia que o ídolo contido e minimalista detestasse a exuberância de cores no cenário e nos figurinos dos artistas. Segundo Caetano, João teria dito a ele algo como: “Cores, festas, balangandãs. Tenho tudo isso na minha voz”. Tinha mesmo.
Em sua música, João Gilberto fez um resumo do que o Brasil tem de melhor. A despeito de poucas e honrosas exceções, não era compositor. Mas poucos compositores criaram tanto e tão radicalmente quanto ele. É um daqueles casos de artistas reconhecidos e festejados em vida – e, mais que isso, estudado, esmiuçado, dissecado por ensaístas e biógrafos. O jornalista Ruy Castro mostrou como, trancado no banheiro, João Gilberto inventou a batida da Bossa Nova. Essa forma solitária de criar, ressoando na acústica dos azulejos, ou sentado na cama de pijama, o acompanhou pela vida afora. O acadêmico Walter Garcia Junior, num livro essencial, “A Contradição Sem Conflito”, passou suas músicas para a partitura – e mostrou como o violão de João Gilberto é o resumo da percussão de uma escola de samba. Uma orquestra de surdos, agogôs, caixas e tamborins vibra sob seus dedos entre a prima e o bordão.
- Foto: Facebook/Sofia GilbertoJoão Gilberto
João Gilberto resume também a tradição dos cantores brasileiros. Em suas primeiras gravações, como “crooner” do grupo Garotos da Lua, a voz dança no tempo, ora em fase, ora em defasagem. Tal procedimento era marca registrada de nosso maior popstar até então, Orlando Silva – de quem João era, explicitamente, um fã e seguidor. Nos Garotos da Lua, João se parece com Orlando, e em vários momentos ensaia um vozeirão que soa estranho para quem começou a ouvi-lo no sussurro de “Chega de Saudade”. Quando encontrou sua voz própria, João não era um rompimento com o estilo dos Carlos Galhardos e Franciscos Alves. Era, antes, um resumo das vozes dos que vieram antes dele.
Ouvidos apressados já compararam João a Chet Baker e a Bossa Nova ao jazz americano. O canto sussurrado de João não vem de Chet Baker, nem as harmonias dissonantes da Bossa Nova vêm do jazz americano. A voz de João Gilberto, como se disse, está mais para Orlando Silva que para qualquer cantor de jazz americano. E, embora os precursores da Bossa Nova, como Dick Farney, fossem fãs da fase jazzística de Frank Sinatra, a música brasileira já havia descoberto as dissonâncias muito antes disso. Elas estavam nos acordes de Pixinguinha e no violão dedilhado por Garoto no Cassino da Urca, onde muitos ouviam harmonias do francês Claude Debussy. Ecos de Garoto, ou de Debussy, que posteriormente foram parar na música de Tom Jobim. Impressionismo francês, choro e bossa nova. Fecha-se um ciclo. Ou, melhor dizendo, abre-se outro.
A música de João Gilberto resume o que de melhor existe no Brasil, mas não se limita às nossas fronteiras. Estão ali as cores e acordes da Tropicália, a batida dos sambas-enredo, a melodia fora do tempo dos cantores de vozeirão dos anos 40 e 50 – e muito, muito mais. João Gilberto buscou a essência da canção em diversos idiomas. João cantou de forma sublime em mau francês (Que Reste-t-il De Nos Amours, tema de um filme clássico de François Truffaut), inglês macarrônico (It’s wonderful), italiano de cantina (Estate). Globalizou-se muito antes de a palavra globalização ter sido inventada. Nos casos acima, aplicou sua bossa sobre a canção de musical da Broadway, a chanson francesa, a canzone italiana. No dia de sua morte, ressoa sua reinvenção radical de um bolero, “Eclipse”. O compasso quaternário se derrete ao sabor da emoção da letra e vira quase uma declamação: “Eclipse de luz en el cielo, ausencia de luz en el mar, muy solo com mi desconsuelo, mirando la noche mi puso a llorar”.
Seis de julho marca a data da morte de um de nossos artistas essenciais. Eclipse de luz no céu numa tarde de sol no Brasil.
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