“O Afeganistão não deve voltar a ser o santuário do terrorismo que foi um dia, e a comunidade internacional deve se unir para garantir isso.” A frase, que parece saída de algum discurso pós- atentados do 11 de Setembro, foi dita pelo presidente da França, Emmanuel Macron, um dia depois da tomada de Cabul pelo Talibã. O alerta deixa evidente o temor de que os 20 anos de combate ao terrorismo islâmico podem se esfacelar após a ofensiva do grupo radical que tomou o país.
Apesar de ter adotado um discurso moderado, a prática do grupo demonstra um modelo de radicalismo similar ao adotado na primeira vez em que o Talibã esteve no poder, entre 1996 e 2001. Há relatos de perseguições a mulheres, jornalistas e colaboradores do antigo governo. Mais do que uma interpretação radical da lei islâmica, a sharia, e a perseguição à própria população, o temor imediato é a liberdade que o Talibã dará para a Al-Qaeda operar.
“A retirada dos EUA do Afeganistão e o retorno do Talibã ao poder é uma vitória incontestável da Al-Qaeda”, afirmou ao Estadão Michael Rubin, ex-assessor do Pentágono e pesquisador do centro de estudos American Enterprise Institute. “O Talibã nunca foi sincero sobre a ruptura de suas relações com a Al-Qaeda, e não estamos falando de dois grupos militares que cortaram suas relações. A presença dos EUA e da Otan impediu que a Al-Qaeda utilizasse o Afeganistão como santuário. Agora, não mais.”
Prova desse descolamento entre discurso e prática ocorreu na sexta-feira, na maior mesquita de Cabul. Khalil Haqqani, membro de uma das organizações terroristas mais poderosas do mundo e um dos nomes mais procurados pelos EUA, apareceu para a oração escoltado por suas forças especiais. Ele confirmou que a rede Haqqani, vinculada à Al-Qaeda, foi incumbida pelo Talibã de cuidar da segurança de Cabul. Foi ovacionado.
Não há razão para pensar que, com a vitória completa, o Talibã vai cortar os laços com o grupo. Do Afeganistão do Talibã, Osama bin Laden e outros líderes da Al-Qaeda dirigiram suas atividades com impunidade. Antes do 11 de Setembro, a Al-Qaeda e outros jihadistas estrangeiros administravam um arquipélago de campos de treinamento no país.
Além de fornecer treinamento, a Al-Qaeda estabeleceu conexões entre vários grupos jihadistas e doutrinou entre 10 mil e 20 mil recrutas que passaram pelos campos de treinamento, de 1996 a 2001, segundo a inteligência dos EUA, aprendendo habilidades letais e criando o que ficou conhecido como uma universidade do terror.
“Por todas essas ligações, o risco de terrorismo para os EUA vai piorar dramaticamente”, afirma Nathan Sales, ex-coordenador de contraterrorismo do Departamento de Estado americano e membro do Atlantic Council, centro de estudos de relações internacionais. “É certo que a Al-Qaeda vai restabelecer um porto seguro no Afeganistão e usá-lo para planejar ataques e coordenar a sua jihad.”
Republicanos e democratas reclamaram do que seria uma saída apressada do Afeganistão. O general Mark Milley, chefe do Estado-Maior Conjunto, advertiu que a Al-Qaeda e o Estado Islâmico (EI) poderiam reconstruir rapidamente suas redes no Afeganistão.
Defendendo sua decisão de retirar tropas do país, o presidente Joe Biden declarou que o “único interesse nacional vital” no Afeganistão continua sendo o que sempre foi: prevenir um ataque terrorista aos EUA. Mas, para muitos analistas, essa tarefa ficará mais complicada. “O Afeganistão se tornou uma base para o contraterrorismo americano e ocidental nos últimos 20 anos, e esse trabalho vai ficar muito mais difícil agora”, afirmou Sales.
Apesar do risco de um retorno das operações da Al-Qaeda no Afeganistão, a reversão do país ao seu papel anterior ao 11 de Setembro como um santuário para o terrorismo jihadista pode não ser tão rápido. Quando o Talibã governou o país pela primeira vez, o Afeganistão era um Estado pária. Apenas três países, Arábia Saudita, Paquistão e Emirados Árabes, reconheciam sua legitimidade.
Hoje, o Talibã afirma querer reconhecimento internacional para o seu “Emirado Islâmico do Afeganistão”, e se diz disposto a adotar um tom mais moderado. Durante as negociações de paz fracassadas que ocorreram em Doha, ficou claro para os negociadores do Talibã que esse reconhecimento desejado só poderia ocorrer se eles se desassociassem completamente da Al-Qaeda. Mesmo China e Rússia parecem pouco inclinados a aceitar o acobertamento do islamismo radical em região próxima a seus domínios.
“É preciso saber se estamos diante de uma situação ruim ou realmente terrível”, escreveu na revista Foreign Affairs John Sawers, ex-chefe do serviço de inteligência do Reino Unido, conhecido como MI6 . “O Talibã pode ter aprendido algumas lições nos últimos 20 anos. A questão é quanto controle a liderança que negocia em Doha tem sobre os combatentes. Tradicionalmente, nas guerras civis, quem está no campo de batalha tem mais poder do que quem está em hotéis cinco estrelas”, disse, referindo-se aos líderes talibã que conduziram as negociações no Catar.
Lobos solitários
Um efeito mais imediato tende a ser um impulso no ânimo de combate sobre os jihadistas, o incentivo de “atores solitários” a cometer atos locais de terrorismo. “Radicais islâmicos em todo o mundo receberão esse choque de ânimo muito necessário com a vitória do Talibã sobre o Grande Satã”, disse Peter Neumann, professor de estudos de segurança no King’s College London.
“Todos os apoiadores da Al-Qaeda estão comemorando, é uma vitória sobre os EUA, que é o objetivo final deles. Não tenha dúvida: muitos grupos aproveitarão essa vitória em termos de propaganda: se o Talibã pode fazer isso, você também pode.”
De acordo com Neumann, nas redes sociais e em salas de bate-papo já é possível perceber “o vento de sucesso soprando pelas velas do movimento jihadista global”. “Eles veem a vitória no Afeganistão como o ápice de uma série de sucessos no mundo, em partes da África, em partes da Síria, com os franceses saindo do Mali – é uma narrativa de sucesso”, disse ele ao jornal New York Times. “Eles vão empurrar e argumentar que você pode lutar por 20 anos e conquistar o poder.”
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