Uma série de erros na apresentação de dados nacionais tem marcado o governo de Jair Bolsonaro. Os equívocos são crescentes e apareceram nos resultados do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), na suspeita de fraude no Bolsa Família, na apuração da balança comercial e até em dados cuja divulgação era exigida pelo Tribunal de Contas da União (TCU). As consequências não se restringem à obrigação de fazer as devidas correções publicamente.
Os "fake numbers" - termo cunhado pelo colunista do Estado Pedro Fernando Nery em uma coluna sobre dados de desigualdade social - já comprometem a confiança nos dados oficiais do governo. Divulgar informações incorretas prejudica a reputação, gera desconfianças, compromete as análises das políticas públicas e econômicas e afeta o cotidiano dos brasileiros.
Segundo o governo, as falhas citadas pelo Estado foram humanas ou técnicas, mas sempre pontuais, e em hipótese alguma fruto de má-fé das equipes. Para o Ministério da Economia, os erros não chegam a afetar a credibilidade dos dados oficial.
Nos bastidores, porém, as inconsistências geram incômodos e fazem com que alguns técnicos passem a trabalhar com radares ligados para detectar possíveis “sabotagens” internas, na véspera do envio da proposta de reforma administrativa. O próprio presidente Jair Bolsonaro usou o termo ao se referir ao problema com o Enem, na terça-feira, 28. Os críticos, porém, alegam desmonte de pessoal e desvio de prioridades do governo Bolsonaro.
Para membros do TCU, as falhas recorrentes colocam em risco a transparência do governo e serão monitoradas com fiscalizações futuras.
Os escorregões apareceram em áreas distintas. Ainda que pontuais, os danos foram severos. O Ministério da Educação (MEC) primeiro chamou de “susto” os erros nos resultados de quase 6 mil participantes do Enem e culpou a gráfica que imprimiu as provas. O assunto foi parar na Justiça, e o que o pasta considerava o melhor exame de todos os tempos virou uma crise.
O governo precisou admitir um erro em auditoria da Controladoria-Geral da União (CGU) que apontou como beneficiário do Bolsa Família a família de servidor do governo do Distrito Federal com R$ 27 mil de renda per capita. A constatação original da CGU foi amplamente noticiada, mas a retificação não foi enviada aos veículos de imprensa. Uma nota com a admissão do erro foi publicada no site do órgão.
Conforme o Estado apurou, o beneficiário e o funcionário público eram homônimos, coincidência corroborada por falha no registro do CPF no Cadastro Único, base que serve de referência para o programa de transferência de renda. Procurada, a CGU não quis se manifestar.
Em novembro, a Secretaria de Comércio Exterior, do Ministério da Economia, anunciou o volume de vendas externas do País com um número US$ 4 bilhões menor do que o real. O que era para ser superávit saiu como déficit. Quatro dias depois, constatou-se que os meses de setembro e outubro também foram computados com erros. Ao todo, o número apresentado ao mercado estava US$ 6,4 bilhões menor. O deslize mexeu com o mercado cambial brasileiro e chamou até a atenção do Financial Times. O jornal britânico avaliou a imprecisão do governo brasileiro como uma das influências para a alta do dólar no período.
A falha ocorreu no Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), empresa pública responsável por compilar os dados da balança. Uma “otimização no código da extração de declarações de exportação” solucionou o impasse. O Ministério da Economia informou que ainda apura eventuais implicações contratuais para constatar “possíveis indenizações por perdas e danos para cobrir os prejuízos causados ao ministério” pela empresa.
O Ministério da Economia cometeu outro erro em dezembro ao divulgar no portal de dados abertos do governo federal informações de pagamentos feitos a cerca de 300 mil pensionistas do Executivo. A publicação atendia a uma determinação do TCU, que havia recebido denúncia de descumprimento da Lei de Acesso à Informação por parte da pasta. Em janeiro, foi identificada “falha operacional na importação da base de dados”, o que invalidava as informações.
A pasta informou ter ocorrido uma “inversão de competências” entre as bases de dados de 2018 e 2019. Os arquivos foram removidos, verificados e corrigidos no último dia 23, sem identificação de inconsistências nos pagamentos dos benefícios. No TCU, o erro foi visto com preocupação. Um ministro ouvido pelo Estado considerou grave a divergência inicial.
A área econômica também errou ao superestimar em R$ 5,7 bilhões a previsão de gastos com pessoal. O resultado foi arrocho orçamentário mais forte do que o necessário ao longo do ano, o que deixou a Esplanada em estado de quase shutdown (paralisação).
No setor cultural, os dados divulgados pelo governo também apresentam inconsistências. Lançado em 1994, o Sistema de Apoio às Leis de incentivo à Cultura (Salic) é um banco informatizado que permite a consulta ao andamento dos projetos candidatos a captar recursos da renúncia fiscal por mecanismo da Lei Rouanet. Ocorre que a base está incompleta e não inclui, por exemplo, o monólogo Coração Bazar, da atriz Regina Duarte, nova titular da Secretaria Especial da Cultura. A peça de Regina teve a prestação de contas reprovada, e a empresa dela ficou obrigada a devolver R$ 319 mil ao Fundo Nacional da Cultura, mas nada disso aparece nos registros do sistema.
Desatualização
Para além dos erros nas apresentações dos dados, também há preocupação com a defasagem das informações. Coordenador do Observatório Fiscal do Ibre/FGV, Manoel Pires vê uma piora na qualidade das estatísticas, o que atrapalha o monitoramento e transparência das políticas públicas pela sociedade. Ele cita, por exemplo, o desconhecimento sobre dados de carga tributária federal, de 2017 e 2018.
“O que está acontecendo não é pontual. Estamos conversando sobre vários órgãos. Tem questões que vão de descuido a problema de falta de pessoal, de financiamento, de manutenção de sistemas. o governo federal e demais entes tem perdido gente”, diz.
Professor de administração pública da UnB, Roberto Piscitelli diz que erros como o da balança comercial são capazes de despertar desconfiança no mercado. “Retificações constantes são muito ruins do ponto de vista da confiabilidade dos órgãos governamentais. Dar um dado e dizer que depois não é bem isso cria um descrédito.”
O especialista pondera que inconsistências nos dados são problemas frequentes da gestão pública. “Nos últimos anos, os termos ‘transparência’ e ‘abertura de dados’ ficaram comuns. Isso é fortemente retórico. Muitas vezes, esses dados são divulgados de forma ininteligível, mesmo para iniciados.”
O secretário-geral da ONG Contas Abertas, Gil Castello Branco, também avalia que erros fazem parte das rotinas, inclusive na iniciativa privada. O problema está na reincidência. “Os erros acontecem, nos setores público e privado, mas precisam ser evitados. Dados divulgados sistematicamente com erros geram falta de credibilidade. O governo não pode ser produtor de fake news”, ressalta.
O diretor-executivo da Transparência Brasil, Manoel Galdino, pondera que em um ambiente de descrédito das instituições os equívocos causam ainda mais estragos. Ele alerta para a eclosão de falhas em áreas distintas do governo Bolsonaro, algo que pode indicar um problema estrutural interno, de procedimentos.
“Quando erros acontecem repetidas vezes e não há um movimento no governo para perguntar o motivo de tantos, perguntar o que há de errado, sugere-se que é um governo que não se preocupa com essa questão. E os erros vão se repetindo. Isso gera dúvidas e reduz a credibilidade, ainda mais no momento em que vivemos, de desinformação, com pessoas acreditando em teorias conspiratórias”, diz.
Erros em série
Balança comercial: em novembro, a Secretaria de Comércio Exterior divulgou as vendas externas com valor US$ 4 bilhões menor que o real. O erro impacto o câmbio. Depois, descobriu que os dados de setembro e outubro também foram apresentados incorretamente. Ao todo, eram US$ 6,4 bilhões a mais.
Bolsa Família: a CGU apontou fraude no pagamento do benefício à família de um servidor do governo do Distrito Federal com renda per capita de R$ 27 mil. Sem alardes, quatro dias após a ampla divulgação da auditoria, o órgão reconheceu o erro.
Enem: notas de provas objetivas de 5.974 participantes do exame foram divulgadas com inconsistências. Segundo o MEC, a culpa foi da gráfica que imprimiu os cadernos de questões e os associou aos gabaritos.
Pensionistas: por determinação do TCU, o Ministério da Economia publicou, em dezembro, a relação de pensionistas do Executivo federal. Em janeiro, identificou um problema na importação dos dados e informou que as informações disponibilizadas deveriam ser consideradas inválidas.
Gastos inflados de pessoal: a Secretaria de Orçamento do Ministério da Economia errou em R$ 5,7 bilhões a mais na previsão de gastos com o pagamento da folha de salários de servidores de 2019. Ao longo de todo o ano passado, a projeção ficou superestimada. A consequência foi um aperto maior no contingenciamento orçamentário que quase colocou a Esplanada num apagão.
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