Foi em junho do ano passado que Gustavo Montezano assumiu a presidência do BNDES. Na época, já havia à sua volta, um cenário econômico global de taxa de juros negativas e liquidez crescente. Assim sendo, deu o start a mudanças que só se aprofundaram com a chegada da pandemia nove meses depois. A demanda por financiamento de grandes projetos sumiu. Das muitas coisas em que mexeu, só uma não mudou, adverte: “A missão do banco, que é ajudar a desenvolver o País, voltado agora para o lucro social e ambiental.” No caso brasileiro, aproveitando os novos ares do marco regulatório deste último setor.
Com a experiência de quem foi sócio diretor do BTG e secretário adjunto da Desestatização do presidente Jair Bolsonaro (até junho de 2019), Montezano chegou ao banco, trocou a diretoria, conseguiu virar a página “sem ressentimentos” e começou a mudar o foco. Dos grandes investimentos em infraestrutura, o banco passou a olhar mais profundamente para o que ele chama de “novo pilar”, os créditos a pequenas e médias empresas.
Relações com os bancos privados? “Não estamos aqui para competir com ninguém”, avisa. “Não é o lucro nem o tamanho da carteira de crédito que mede o sucesso do BNDES”. Na entrevista que se segue, dada ao programa Cenários, parceria entre Estadão e Banco Safra, ele define: “Importante para nós é o conceito de estabilidade financeira.”
Queria começar falando da baixa taxa de juros no mundo, negativa em muitos países. Como o BNDES está se adaptando a isso?
Ele terá de passar por mudanças, aliás já está passando. O que temos feito nestes últimos 15 meses, desde que aqui cheguei, foi exatamente isso. Preparar o banco para esse novo normal acelerado pelo coronavírus. A estrutura monetária mudou drasticamente. E mudou também a forma de os investidores enxergarem a atratividade dos investimentos. O mundo mudou completamente.
Nessa nova realidade, os grandes empresários, os grandes projetos têm acesso a financiamento externo a taxas muitas vezes menores que as praticadas pelo BNDES. O médio e pequeno empresário, nem tanto. Como você vê essa mudança?
Existem diferentes pilares, o do pequeno e médio empresário e também o da infraestrutura. No primeiro caso, a gente colocou de pé, com o governo federal, o programa emergencial de acesso ao crédito, que é o Fundo Garantidor. Até hoje, ele já desembolsou R$ 60 bilhões para os pequenos e médios. Temos o programa emergencial de acesso ao crédito, o emergencial de suporte ao emprego, agora o de financiamento às maquininhas. Enfim, pequenos e médios passam a ser um pilar importante para o banco.
Houve muita reclamação desses médios e pequenos, de que não tinham acesso ao crédito. O BNDES disponibilizava, mas esses recursos não chegavam por meio dos bancos pelos quais vocês fazem o repasse. O que foi que aconteceu nesse percurso?
Essa realidade já mudou. Do fim de julho pra cá, o volume de desembolso para médio e pequeno empresário, dados do Banco Central, voltou a andar forte, graças às ações bem sucedidas do governo. Agora, o que você falou também é verdade, quando a crise começou, vários problemas nossos vieram à tona, como o acesso ao crédito do pequeno e médio empresário. Mas são problemas que a gente já tinha como legado. Fomos experimentando e melhorando. E aí, graças a Deus, acertamos há pouco mais de 8 semanas. A concretização de empréstimos para os pequenos e médios cresceu substancialmente.
Vocês fizeram alguma ação junto ao sistema financeiro privado pra isso andar mais rápido?
Com certeza, e o trabalho que a gente fez foi totalmente coordenado com eles. Porque o BNDES é um banco de atacado, que não tem agência. O que nos permite trabalhar em condição de igualdade com todos os bancos. Por outro lado, a gente precisa deles pra distribuir o nosso crédito. Por isso, dou destaque ao programa emergencial de acesso ao crédito, que garante o crédito para o banco em nome do empreendedor que está tomando aquele recurso. É algo nunca antes feito no Brasil, um seguro de crédito, que foi muito bem sucedido. E a gente chegou nesse produto dialogando com o Ministério da Economia, com o setor produtivo e com o sistema bancário. Foi essa articulação, ouvindo todas as pontas, que nos levou a esse sucesso. O BNDES fez o papel de centralizador e criador do produto. Aí estão os resultados, falando por si.
Há anos que o banco é cobrado porque teria uma caixa preta. Você a encontrou?
Essa foi uma polêmica na qual o banco se envolveu durante anos, e é com felicidade que a gente vê essa página virada. Assumimos em julho de 2019, o banco estava em sua pior fase em termos de nota e avaliação. Passados 15 meses, a gente está na máxima histórica de avaliação positiva da transparência e reputação. Fruto de um trabalho de explicação, de não ter medo de falar.
O BNDES vê os bancos privados como concorrentes ou parceiros?
O BNDES desse novo normal não está aqui para competir com ninguém. Ele foi fundado, há 68 anos, para ajudar a melhorar o PIB, ter mais renda e menos desigualdade. E o propósito é o mesmo até hoje. E como a gente moderniza a atuação do banco? Parando de competir. Não é o lucro nem o tamanho da carteira de crédito que mede o sucesso desse banco. Importante para ele é o conceito de sustentabilidade financeira. Querer competir com o privado, como se fosse um capitalista selvagem brigando pelo lucro financeiro, é o oposto do BNDES.
Em termos de meio ambiente, o que o banco está fazendo?
Eu diria que meio ambiente é, talvez, a principal pauta do banco dos próximos dez ou vinte anos. O BNDES já a pratica há bastante tempo e agora ela está se transformando em ação institucional. O que eu posso destacar? Estamos coordenando, com o governo e cerca de 10 Estados, mandatos de concessão de parques florestais. Pegando áreas de grande potencial turístico, como Foz do Iguaçu, Jericoacoara, Lençóis Maranhenses.
Tem algum projeto de São Paulo nisso? O Ibirapuera...
São Paulo, especificamente, não me recordo. O Ibirapuera, que você citou, é bem um exemplo que a gente usa como case pra ilustrar a estratégia. Fizemos um bem-sucedido leilão de saneamento em Alagoas.
Em termos de saneamento, estão recebendo muitos projetos?
Sim. Antes do marco regulatório, a carteira de projetos já vinha crescendo, e, depois de aprovado, esse marco regulatório deu um belo empurrão. Depois do sucesso em Alagoas, temos convicção de que essa agenda vai ser acelerada.
Qual foi o ágio dessa operação?
Veja que número impressionante. Uma concessão recebeu R$ 2 bilhões de investimento mais R$ 2,5 bilhões de outorga. São R$ 4,5 bilhões colocados para saneamento numa região de 1,5 milhão de pessoas. É muito dinheiro. O consórcio vencedor é a BRK Ambiental, um fundo de pensão canadense supercapitalizado que já tem uma operação de saneamento no Brasil.
Você trabalhou anos na iniciativa privada e foi dirigir um banco público. O que mais o surpreendeu, de positivo e de negativo, nessa mudança?
De positivo, a qualidade das pessoas. Não só no BNDES, mas no governo em geral, é alta a qualificação do servidor. Nossa dificuldade na gestão pública não é a capacitação. É a organização, alinhamento de interesse, remuneração apropriada. Tem gente boa, o que precisa é mudar a forma de trabalhar.
Você mudou muito a estrutura?
Bastante. O que me surpreendeu negativamente foi ver os bancos públicos muito orientados ao lucro financeiro. É natural que banco privado tenha esse direcionamento – ele é privado. Mas essa não é nossa função. Quando saí lá da Faria Lima e vim pro banco público, vim pra ajudar a gerar lucro social, lucro ambiental.
O País tem três bancos públicos, precisa de tudo isso?
É importante que nós, sistema de financiamento público, sejamos mais ambiciosos quanto ao lucro social. Tem de pagar as contas sim, mas de modo algum ficar competindo com o setor privado.
Uma curiosidade: qual é o patrimônio atual do BNDES? Quanto ele custa por ano?
Em números redondos, é da ordem de R$ 100 bilhões. Por ano, ele custa entre R$ 3 bilhões e R$ 4 bilhões. Ou seja, o banco tem uma boa estabilidade.
Você mexeu na cúpula do banco quando entrou?
Troquei todos os diretores do banco. Ele já tinha uma diretoria bem capacitada, mas num projeto desses é importante estar com pessoas que você já conhece. Agradeço imensamente aos diretores que estavam aqui, eles contribuíram bastante, e mexemos também no patamar de baixo. Tá dando ótimo resultado, e sem ressentimentos. Nossa Basileia está hoje em quase 40%, uma cobertura muito confortável. E como nossa carteira de crédito é longa, o banco pode pensar em termos de sete, dez ou 12 anos. Um luxo que, a meu ver, nenhum banco do mundo tem.
E como está em termos de volume de crédito? Qual o impacto da covid nesses números?
Vai sobrar dinheiro em caixa no fim do ano, apesar de a covid-19 ter elevado muito o nosso desembolso. Em 2019 desembolsamos no total uns R$ 60 bilhões e esperávamos algo abaixo disso este ano. Com a covid, aumentamos as linhas para pequenas e médias empresas e os bancos privados se retraíram nas operações para grandes empresas. Mas a gente manteve o spread, o prazo, o custo e isso aumentou a demanda. Em paralelo, há os fundos garantidores de crédito. Tudo isso aumentou o nosso desembolso. Nesses programas de crédito, a gente fez algo em torno dos R$ 70 bilhões. E vai fazer mais de R$ 60 bi até o fim do ano. Uma das maiores altas históricas do BNDES.
*ECONOMISTA PELO IBMEC E ENGENHEIRO MECÂNICO PELO INSTITUTO MILITAR DE ENGENHARIA, FOI SÓCIO-DIRETOR DO BTG PACTUAL E SECRETÁRIO DE DESESTATIZAÇÃO DE FEVEREIRO A JUNHO DE 2019.
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