Com a aprovação da reforma da Previdência na Câmara dos Deputados, depois de quase cinco meses de negociações e muito vaivém, uma nova fase começa a se desenhar para o governo e para o País. Embora ainda falte a votação final na Câmara e a do Senado, o ministro da Economia, Paulo Guedes, já avisou que agora será a vez de acelerar as privatizações, conduzidas até hoje em marcha lenta, para evitar “marolas” que pudessem comprometer as mudanças na Previdência. O programa de privatização de Guedes é ambicioso. Se for concretizado, ainda que parcialmente, promete mudar o perfil da economia do País. Um levantamento realizado pelo Estado indica que o programa de desestatização do governo poderá render até R$ 450 bilhões.
O resultado inclui 132 participações acionárias diretas ou indiretas da União, com potencial para negociação pulverizada no mercado ou em bloco, e os valores mínimos de outorga da cessão onerosa de áreas do pré-sal e de duas rodadas de licitações de petróleo e gás natural, que devem ocorrer ainda neste ano.
O levantamento levou em conta operações de privatização, desinvestimento, abertura de capital e venda de participações minoritárias de estatais e suas subsidiárias. Também considerou as participações do BNDES, via BNDESPar, seu braço de investimento, em empresas de capital aberto e fechado, cujo valor total de mercado atualizado é de R$ 143,7 bilhões.
Petrobrás, Banco do Brasil, Caixa e BNDES, excluídos em princípio do programa de desestatização do governo Bolsonaro, não entraram na pesquisa. Como os valores mínimos de outorga para concessões de serviços públicos no segundo semestre e nos próximos anos não estão definidos, elas também não entraram na conta. O mesmo aconteceu com os imóveis públicos que o governo pretende a repassar para fundos imobiliários, com valor calculado em R$ 30 bilhões pelo Ministério da Economia.
As estimativas de arrecadação com o programa de desestatização apresentam uma dispersão considerável. Guedes, por exemplo, fala na possibilidade de arrecadar R$ 1 trilhão – número “mágico” ao qual recorreu também na reforma da Previdência – até 2022. Mais conservador, o secretário Especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercado, Salim Mattar, ligado a Guedes, já previu algo entre R$ 700 bilhões e R$ 800 bilhões, mas hoje trabalha com uma receita de R$ 635 bilhões, acrescentando R$ 115 bilhões de outorgas em concessões e os imóveis.
No mercado financeiro, as previsões estão mais próximas dos valores apurados pelo Estado. O Bradesco BBI, braço de investimento do grupo, calcula que seja possível arrecadar R$ 470 bilhões em desestatizações na esfera federal. Para o banco Credit Suisse, o potencial de arrecadação com desestatizações no Brasil foi estimado em R$ 400 bilhões.
Se conseguir amealhar a metade do que apontam os levantamentos do Estado, do Credit Suisse e do Bradesco – algo entre R$ 200 bilhões e R$ 235 bilhões –, o governo já terá realizado o maior programa de desestatização em todos os tempos no Brasil. Segundo estudo do BNDES, as 99 operações de desestatização efetuadas de 1990 a 2015 no País renderam no total US$ 54,5 bilhões. No governo Temer, foram mais R$ 46,4 bilhões (cerca de US$ 12 bilhões) em 124 projetos, dos quais R$ 28 bilhões só na área de petróleo. Somando tudo que se fez até agora, dá um total de US$ 66,5 bilhões, equivalente a um terço do que a atual gestão arrecadaria no cenário mais pessimista considerado acima.
Caso os planos de Guedes se realizem, o Brasil também poderá se habilitar ao título de País com o maior programa de desestatização do mundo no período. Em número de operações, Angola, por exemplo, tem mais de 190 empresas na fila para privatização, de acordo com Mattar, e pode até superar o Brasil em número de empresas privatizadas. Mas, em volume financeiro, não há notícia de que nenhum dos grandes países emergentes ou mesmo desenvolvidos esteja tocando um programa dessa magnitude. Mesmo no ministério da Economia, ninguém havia se dado conta dessa possibilidade até agora.
Redução
Formado na Universidade de Chicago, templo do liberalismo global, Guedes quer reduzir ao máximo a intervenção estatal na economia. Em sua visão, as estatais, muitas delas deficitárias, consomem o dinheiro que deveria ir para a educação, a saúde e a segurança, áreas que o governo deve privilegiar, em vez de se movimentar como empresário por aí. Além disso, a proliferação de estatais dispersa a energia da máquina pública, compromete a eficiência e a produtividade da economia e abre espaço para o tráfico de influência e a corrupção. “Privatizar só no sapatinho, envergonhadamente, não”, disse Guedes recentemente. “Tem de acelerar a privatização para jogar o dinheiro na área social.”
Além de deixar o Estado mais leve, seu objetivo com o programa de desestatização é usar os recursos para reduzir a dívida pública, hoje na faixa de R$ 3,9 trilhões (79% do PIB), e permitir uma queda sustentável dos juros, que representam o segundo maior gasto do governo – de cerca de R$ 350 bilhões em 2018 –, depois da Previdência.
Desta vez, ao contrário do que aconteceu nos anos 1990, na primeira onda de privatizações nos governos Collor, Itamar e FHC, o BNDES não deverá ter papel preponderante no financiamento das operações. De acordo com Marcelo Noronha, vice-presidente executivo do Bradesco, os investidores externos estão olhando o Brasil com lupa e não deverá faltar dinheiro de fora nem daqui para bancar os negócios.
Outra questão importante que ele destaca: agora, os fundos de pensão das grandes estatais, como Petros (Petrobrás), Previ (Banco do Brasil) e Funcef (Caixa) não deverão ser fundamentais nos leilões, como ocorreu no passado. “Hoje, há uma liquidez no mercado internacional que não existia naquela época”, diz. “Com as variáveis reunidas hoje no mundo, o Brasil se tornou o país preferido dos investidores entre os mercados emergentes. Com a reforma da Previdência feita, a tendência é o processo ganhar tração.”
Noronha diz estar analisando diversos projetos de desestatização com clientes do País e do exterior. Ele conta que estava conversando recentemente sobre o assunto com o presidente de uma grande empresa internacional e ele lhe disse: ‘Tenho interesse e vou fazer negócio no Brasil. Vou comprar ativos, estarei nos leilões.” Ele estima que possam entrar até US$ 100 bilhões de investidores estrangeiros na Bolsa neste processo.
Um impulso adicional para atrair o pessoal de fora pode ser dado com a flexibilização das regras de operação de empresas privadas nas áreas de saneamento, com o possível fim do monopólio das estatais estaduais, e de gás natural, com o fim do monopólio da Petrobrás. “O nível de interesse dos investidores por esses dois setores é enorme”, diz Bruno Fontana, diretor do banco de investimento do Credit Suisse no Brasil. “O potencial de investimento no mercado de saneamento no País, uma vez acordado o novo marco regulatório, não tem igual no mundo hoje.”
No Brasil, os tentáculos do Estado se espalham por quase todas as áreas da economia, da extração de petróleo às comunicações e à produção de chip para rastreamento de animais; da geração de energia à construção de ferrovias e à administração de portos e aeroportos. No governo Dilma, criou-se até uma empresa para cuidar do trem-bala, cujo projeto consumiu milhões de reais, mas nunca saiu do papel, e ela continua a existir até hoje com outro nome.
Embora o ex-presidente Michel Temer tenha dado novo impulso ao programa de desestatização, que patinou durante os governos Lula e Dilma, ao promover um corte no número de estatais, de 154 para 134, o Leviatã pareceu mal sentir o golpe. O Brasil ainda é o país da América Latina com o maior número de estatais, de acordo com Mattar.
Fatia
Segundo dados oficiais, das estatais que restaram, 46 têm controle direto da União e 88, controle indireto – são 35 subsidiárias da Petrobrás, 30 da Eletrobrás, 16 do Banco do Brasil, 3 da Caixa, 3 do BNDES e 1 dos Correios. A União ainda detém 58 participações minoritárias em empresas privadas e públicas (estaduais e federais).
Há dúvidas, porém, também aqui, quanto à precisão dos números. Muitos analistas suspeitam que a presença do Estado na economia seja bem mais ampla. Nem o próprio governo sabe exatamente de quantas empresas é sócio, em especial de forma indireta. O próprio Mattar disse recentemente que pretende fazer uma nova pesquisa para apurar de forma mais precisa o número de estatais em nível federal, estadual e municipal. Para ele, o total de estatais nas três esferas, hoje de 440, pode ser até 50% maior do que o divulgado agora. Levantamento realizado pela revista Época em 2011 apurou a existência de pelo menos 675 empresas com algum traço de participação da União, de estatais federais ou de suas subsidiárias no capital.
Hoje, embora a privatização tenha deixado de ser um palavrão no País e o cenário seja mais favorável do que há alguns anos, ela ainda encontra resistência em parcelas da população. Pesquisas apontam resultados contraditórios, que revelando uma polarização em relação ao tema, como acontece com várias outras questões atualmente. Uma sondagem feita no início do ano pela Paraná Pesquisas mostra que 53,3% dos entrevistados apoiam a venda da totalidade ou de uma parte das estatais, enquanto 41,5% se disseram contrários à privatização.
Já uma pesquisa feita pelo Datafolha na mesma época apurou que 60% rejeitam a desestatização, ao passo que 34% afirmaram que o governo deveria vender o maior número possível de empresas públicas. Entre os que disseram ser apoiadores do PSL, o partido do presidente Jair Bolsonaro, 65% se declararam a favor da privatização.
No Congresso, as trincheiras dos estatistas estão bem montadas, reforçadas por parlamentares de todos os partidos. Pelo Legislativo, só deverão passar as propostas de privatização das empresas controladas diretamente pela União, conforme decisão recente do Supremo Tribunal Federal (STF).
Se isso libera a venda das subsidiárias pelas empresas-mãe, amarra a privatização de empresas como a Eletrobrás, que já entrou no rol de privatizáveis do Programa de Parceria de Investimentos (PPI), uma espécie de hub do governo para informações sobre privatizações e concessões. Os Correios, cuja operação recebeu o aval público de Bolsonaro antes de ele demitir o general da reserva Juarez Cunha, ex-presidente da empresa, declaradamente contra a desestatização, também terão de passar pelo mesmo processo. A discussão deve pegar fogo no segundo semestre.
Resistência
Mas é provavelmente dentro do próprio governo que Guedes e Mattar enfrentam hoje a mais dura batalha para fazer deslanchar as privatizações propriamente ditas e extinguir as empresas consideradas dispensáveis. Os estatistas estão por todos os lados na Esplanada dos Ministérios. Mattar chegou até a se dizer “frustrado” pela lentidão do processo. “Eu não tenho controle absoluto das desestatizações”, afirmou.
Até o ministro Tarcísio Gomes de Freitas, da Infraestrutura, um técnico que tem estruturado com eficiência as concessões na área, abraçou a Empresa de Planejamento e Logística (EPL), aquela do trem-bala, que está até repondo vagas e contratando pessoal, e a Valec, de construção e gestão ferroviárias. Ambas estavam na lista de extermínio do Ministério da Economia. A Empresa Brasil de Comunicação (EBC), que também estava jurada de morte, ganhou sobrevida na gestão do ex-ministro Carlos Alberto dos Santos Cruz, da Secretaria de Governo, e ao que parece também teria deixado a UTI.
Outro que “sentou em cima” de suas estatais foi o ministro Marcos Pontes, da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. Ele se recusa a privatizar ou fechar qualquer uma das empresas ligadas ao seu ministério – os Correios, a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), a Telebrás e o Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec). As divergências entre Mattar e Pontes chegaram ao limite e hoje, segundo uma fonte do Ministério da Economia, eles nem se falam. De quebra, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, ainda resiste à privatização da Cia. Nacional de Abastecimento (Conab).
Para não deixar o programa de privatização parar de vez, por falta de empresa para privatizar, a saída encontrada por Guedes foi acelerar as operações de vendas de subsidiárias e de participações dos bancos ligados à sua Pasta – a Caixa, o Banco do Brasil e o BNDES – e também contar com o apoio de seu amigo Roberto Castello Branco, presidente da Petrobrás, para turbinar o processo no seu quintal.
Com o desafio de colocar a privatização em movimento no segundo semestre, mas dependendo de outros ministros para avalizar as operações, Guedes terá de contar com o apoio de Bolsonaro para superar as resistências de seus pares. Ele aposta que Bolsonaro, cuja história é marcada por posições intervencionistas e estatizantes, converteu-se de fato à sua cartilha liberal, como tem dito desde a campanha, e irá “bancar” o ambicioso programa de privatização que pretende implementar, apesar dos sinais contraditórios que ele mostra de tempos em tempos. Não vai demorar para se saber o desfecho da história.
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