A postura do presidente do Brasil, Jair Bolsonaro (sem partido), sobretudo nesse período de pandemia do novo coronavírus (Covid-19), voltou a ter espaço na imprensa internacional. Desta vez, as ações do presidente foram o tema da entrevista concedida pelo governador do Piauí, Wellington Dias (PT-PI), ao Jornal espanhol El País, nesta segunda-feira (18).
Durante o diálogo, Wellington disse não acreditar que Bolsonaro consiga concluir o mandato e ponderou que, ao invés de focar nas ações para combater a pandemia, o presidente tem pensando apenas em tentar se reeleger em 2022. “O Brasil está sem comando”, afirmou.
O chefe do Palácio de Karnak também analisou as mudanças ocorridas no comando do Ministério da Saúde, com as saídas dos médicos Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich. “Para mim, quem caiu não foi o ministro Mandetta. Quem caiu não foi o ministro Nelson Teich. Quem caiu foi a ciência. Seguir a ciência no Brasil é uma proibição”, criticou Dias.
- Foto: Lucas Dias/GP1Wellington Dias
Quando o tema é pandemia, o Piauí é um dos estados que tem apresentado melhores números. No último boletim da Secretaria de Estado de Saúde (Sesapi), divulgado na noite de domingo (17), foram confirmados 2.287 casos e 80 óbitos.
Confira a entrevista na íntegra:
Pergunta. O senhor já foi deputado, senador, está em seu quarto mandato no governo. Qual é sua avaliação? Acha que o presidente Jair Bolsonaro termina o seu mandato?
Resposta. Não será fácil para ele, pelo estilo, nem para o Brasil. Porque, mais do que qualquer período de nossa República, nós precisamos de um presidente com capacidade de articulação, de integração. Fazer o enfrentamento do coronavírus integrando Estado, Município e União, os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, o setor privado e com outros países não é fácil em momento nenhum. Imagina sem essa capacidade de articulação, de diálogo. É impossível.
P. Conseguiria estimar quanto tempo o Governo dele resiste?
R. Não. Deixo isso para o Supremo [Tribunal Federal] que já tem processo aberto e para o Congresso Nacional, que saberá avaliar quando for o momento.
P. E sobre a saída do Nelson Teich do Ministério da Saúde?
R. A saída do ministro Teich representa mais do que instabilidade. É uma posição clara do poder central de não apoiar ministros que seguem a ciência. Não há nenhum interesse do atual governo de garantir que se tenha o plano covid-19 que foi traçado pelo Ministério da Saúde, equipe técnica, juntamente com os secretários de Estado e municipais, ou seja, o isolamento social como uma medida preventiva. Destaco também a medida de não fazer o tratamento de uma maneira adequada. O Governo caminha para fazer o uso da cloroquina como a grande salvação, quando, na verdade, nós já temos no Brasil inteiro protocolos que seguem a ciência, onde o médico tem a autonomia de ministrar a medicação, o tratamento e os exames que ele entender adequado. Para mim, quem caiu não foi o ministro Mandetta. Quem caiu não foi o ministro Nelson Teich. Quem caiu foi a ciência. Seguir a ciência no Brasil é uma proibição. A ausência de um comando unificado, de uma política unificada para a saúde, é algo que leva o Brasil para a quarta colocação em número de casos de coronavírus e um índice de letalidade dos mais elevados do planeta. Aqui no Piauí temos baixos indicadores de letalidade porque apostamos na ciência e dá bom resultado.
P. Qual é a sua avaliação política da saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça?
R. O Brasil está sem comando. No Governo Bolsonaro só há preocupação com a eleição de 2022. Primeiro ele demite o ministro da Saúde [Luiz Henrique] Mandetta. Depois força a saída de Moro. Tudo de olho nas eleições. Não pensa na população em nenhum momento.
P. Além das demissões de ministros, o que lhe faz pensar que há falta de comando?
R. O presidente está pregando o não isolamento social, defendendo a volta a abertura dos empreendimentos sem dar o apoio para a ampliação de leitos, de UTIs. Sem o apoio do Governo federal, nós vamos ter um genocídio. Temos registrado diariamente mais de 800 óbitos no Brasil. Daqui a pouco, pelo andar da carruagem, chegará a 1.000.
P. Na sua visão, de que maneira a saída de Teich interfere no combate à doença?
R. O problema maior na troca seguida de dois ministros da Saúde é a insegurança criada para a população. Passa uma mensagem trocada. Passa uma intranquilidade. O fato é que esses ministros não contavam com apoio [do presidente]. Imagina saber de uma decisão tomada em sua área através da imprensa, sequer ele foi consultado. Essa situação é constrangedora. É algo que causa um problema tão grande quanto a pandemia porque coloca para governadores, prefeitos e rede privada uma responsabilidade muito grande, de ter de substituir o papel da inoperância do governo federal. Quem deveria ter a relação internacional, ir a outro país comprar respirador, kits para exames, equipamentos? Era o governo federal. E ao mesmo tempo investir no Brasil para que nossos cientistas trabalhassem novos equipamentos e insumos que fossem necessários. Temos no Brasil algo mais ameaçador.
P. O que é mais ameaçador?
R. Temos uma ameaça à democracia. Neste instante ela está em xeque. Há a necessidade dos líderes das mais diferentes correntes políticas estarmos unidos na defesa da democracia e na defesa de um plano para tirar o Brasil desta crise. É uma crise que tanto na saúde quanto na economia tem um inimigo comum, o coronavírus. Também quero retomar a normalidade, mas ainda não tem vacina nem remédio para o tratamento da covid-19, por isso, temos de lidar com o problema como ele é e trabalhar de forma integrada.
P. Estamos perto de um colapso?
R. Sim, porque o nível de contaminação não parou de crescer. Quanto mais cresce, mais pessoas demandam por vagas em áreas de alta complexidade que não estão disponíveis. Cada vez mais e mais, capitais e grandes cidades do Brasil entrarão em colapso. Isso tudo acontecendo e o governo tratando da estratégia eleitoral de 2022. Não é razoável.
P. O que o Governo Federal prometeu e o que ele cumpriu de fato no combate à covid-19?
R. Houve uma promessa de que o governo compraria, há 45 dias, 15 milhões de exames para que houvesse uma testagem mais elevada para a gente saber onde tem pessoas infectadas e onde não tem. O Governo tinha comprado 500.000 para o Brasil inteiro. O Piauí recebeu 7.200 kits. Havia promessa de entrega de respiradores, eram 60 para nós.
P. Esses respiradores não chegaram?
R. Sabe o que o Governo fez? O Piauí fez uma compra de um fornecedor de São Paulo, de 80 respiradores, e o Governo federal bloqueou. Tivemos de recorrer à Justiça porque a empresa nos falou: “aqueles que estavam reservados para você já foram levados e temos de fazer novos”. Não é razoável. Além de o Governo não comprar, o ministro Marco Aurélio Mello [do Supremo] teve de dar uma decisão para garantir que receberíamos o que compramos. Decidiu que o Governo tem de parar de bloquear equipamentos comprados pelos Estados e municípios.
P. Qual era a estimativa de casos que vocês tinham no início da crise e qual é a de agora?
R. Olha o tamanho de nosso desafio. O Estado, até o mês de fevereiro tinha cerca de 600 leitos de UTI e salas de estabilização em todo o nosso sistema para atender todas as doenças. Incluindo setor público e privado. Planejamos alcançar mais 500 leitos de UTI só para covid-19 nos próximos 45 dias. Dos 600 que já tínhamos, vamos separar 100 para coronavírus. Estamos em meio a uma operação de guerra. Quando começamos a receber internações graves, foram três em 18 de março, naquele momento eu só tinha disponível 30 leitos de UTI.
P. Com esses 30 leitos, hoje, vocês já estariam em colapso.
R. Sim. Chegamos agora a garantir 246 e na primeira semana de maio chegaremos a 294.
P. Ainda distante de alcançar os 600 leitos específicos para tratar covid-19. Por qual razão?
R. O grande problema são os respiradores. Até monitor temos conseguido. E também estamos com dificuldade em adquirir gases medicinais porque há pouquíssimos fornecedores no Brasil. Agora, sair de 30 leitos disponíveis para 600 não é uma operação simples. O que acontece aqui acontece em todos os Estados. No Piauí, temos ficado com um nível de ocupação variando de 20% a 30% do total dos leitos.
P. Com essa ocupação, significa que vocês estão confortáveis?
R. Não. Significa que ainda temos um pouco de tempo, umas duas semanas no máximo para botar em prática nosso planejamento. A realidade do Brasil, de maneira geral, é que estamos trabalhando no escuro. Aqui, determinei que nossos técnicos sigam para 15 regiões do Estado fazer uma testagem por amostragem estatística para que eu possa ter uma noção qual é o nível de contaminação no Piauí. Também estou fazendo a testagem de mais ou menos 1,5% da população em 224 municípios. Tenho de saber qual é o tamanho dessa contaminação e reduzir a subnotificação. É o que o Brasil inteiro tem de fazer, sem dúvida.
P. Sendo tão grave, por que se demora tanto para agir?
R. Porque no meio disso tudo a política está prevalecendo. O que precisamos saber é o número básico de reprodução. Tem de saber quantas pessoas estão sendo contaminadas por quem já pegou a doença. Temos uma situação que, ao colocar uma UTI, qualificar profissionais. Junto com a UTI estamos fazendo uma modelagem com telemedicina para poder viabilizar que profissionais que não são daquela área específica possam ser orientados por quem entende dos equipamentos que passarão a operar.
P. E o isolamento?
R. O isolamento social é a forma mais eficiente para eu ter um controle do nível de contaminação. Estamos fazendo pesquisas por três semanas seguidas para ter uma noção do quanto está variando o isolamento aqui. Na minha rede, os quatro dados confiáveis são um gráfico sobre pacientes que chegam com síndrome respiratória aguda grave – que no Piauí chegou a crescer 15 vezes em um ano, agora estamos com 11 vezes mais –, a outra é saber o número de vagas e ocupações, a outra são as confirmações de casos e, por fim, o número de óbitos. Número que estão relativamente baixos, com 5 óbitos para cada milhão de pessoas.
P. Ainda assim, há uma subnotificação, já que o senhor admite que precisa testar mais.
R. Sim. Eu já fiz 1.000 exames para cada milhão de pessoas. Mas preciso fazer 20.000 para cada milhão. Nós cobramos do novo ministro da Saúde [Nelson Teich], precisa fazer acontecer o plano que apresentamos a eles. Já tem um mês e meio e nada. Não recebi nenhuma UTI, não recebi nenhum respirador, pelo contrário, fizeram um gesto de tirar respirador.
P. E a sua responsabilidade, qual é?
R. Eu acabei de aprovar um orçamento de 295 milhões de reais para a pandemia no Piauí e estou buscando uma nova operação de crédito de mais 100 milhões de reais. Eu explico aqui para o povo. Uma dona de casa fica sabendo de última hora de que vai ter de receber um número grande de membros da família para um almoço. Então, é preferível você fazer mais comida do que faltar comida. Só que aqui, estamos lidando com vida. Eu preciso ter uma capacidade maior até do que a realidade. Estou comprando leitos de hospitais privados, fazendo hospitais de campanha. Para se ter uma ideia, tínhamos condições de atender pacientes de covid-19 em sete regiões. Agora, estamos indo para 34. Ainda temos uma situação de ocupação de leitos baixa, mas sei que, como a minha vizinhança, Maranhão, Ceará, Pernambuco, está entrando em uma situação crítica, posso ser afetado.
P. A que o senhor atribui esses baixos índices até o momento?
R. Estamos atingindo bons índices de isolamento social, modéstia parte. Também implantamos isolamentos específicos. Pessoas que entram pelos aeroportos, rodovias, ferrovias são obrigadas a cumprir uma quarentena de no mínimo sete dias. Quem também entra em contato com alguém contaminado tem de se isolar.
P. Mas o isolamento no Piauí tem caído. Já chegou a 70%, conforme a empresa Inloco. Agora está em torno de 50%. Por que caiu? Vocês afrouxaram as regras?
R. Toda essa pressão feita a partir do presidente da República tem efeito no Piauí. E em todo lugar. Isso encoraja simpatizantes, encoraja pessoas do comércio a reagir contra. Infelizmente, aqui é uma batalha. Tenho tido um bom apoio tanto do Ministério Público quanto do Judiciário, diria que 99% dos prefeitos também têm um compromisso. Mas a pressão tem sido muito grande aqui, enfrentamos várias batalhas para evitar que cresça.
P. Qual é o impacto econômico para o Estado?
R. Será muito grande. Nossa economia é 60% serviço. Boa parte desse serviço, comércio. Nossa principal receita vem do [Imposto sobre circulação de mercadorias e serviços] ICMS. Foi nesse setor, no comércio, que mandamos fazer o isolamento social. Já tivemos 36% a menos na receita do que tivemos no mesmo período do ano passado. O problema é que só estamos recebendo a compensação do Fundo de Participação do Estado, que é uma receita menor. Então, é essencial, para Estados e Municípios, esse projeto que está no Congresso de compensação do ICMS. Estou me preparando para três coisas. Queremos alcançar um índice de contaminação baixo, o R1, quando uma pessoa transmita para no máximo mais uma. Queremos ter uma redução de pessoas com síndrome respiratória em nossa rede. Também o número de vagas versus ocupação. E, ainda, a gente olha o número de áreas com mais notificação.
P. Há plano de retomada, de reabertura do comércio?
R. Precisamos conseguir um número maior de testes, estimular o uso daquele termômetro pistola para aferir a temperatura, conseguir distribuir máscaras, e analisar todos os outros indicadores que citei há pouco. Agora, após coronavírus, vamos viver um pós-guerra. Temos de ter uma estratégia para reerguer a economia. Já apresentei para a Assembleia Legislativa um pedido de duas operações de crédito mostrando que o Estado está disposto a se endividar para ter condições de apoiar setores da economia para realizar obras de recuperação de estradas, apoiar a agricultura familiar, o turismo, os pequenos empresários. Quero casar investimentos públicos e privados, mas esse plano ainda está embrionário. Não estou na onda de abrir o comércio só por abrir. Tenho consciência que o Piauí está dentro do Brasil e o Brasil ainda está numa fase de forte expansão do coronavírus.
P. Onde o senhor falhou nesse processo para tentar controle a pandemia? Qual é sua autocrítica?
R. Num primeiro momento a gente seguia o que dizia a Organização Mundial da Saúde. A OMS dizia que você deveria ter três leitos clínicos para cada leito de UTI. Olhando hoje, a demanda forte de covid-19 é por leito de UTI. Devíamos ter investido mais nisso, antes. Tanto que, agora, fizemos uma revisão. Estamos colocando essa meta de 600 leitos de UTI para 1.000 leitos clínicos. A segunda autocrítica foi que esperamos por muito tempo, mais ou menos entre 18 de março e 10 de abril, o apoio do Governo federal. Todo dia diziam que chegava amanhã. E isso terminou nos atrapalhando. Porque quando fomos a campo já era um período que tudo estava mais difícil. Um respirador que a gente comprava por 18.000 dólares, hoje se compra por 40.000 dólares. Já tem gente pedindo 60.000 dólares. Virou um leilão insensato. Algo desumano até. Vamos ter de lidar com isso.
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