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Resolução consagra Alexandre de Moraes como 'editor da República', diz site

Editorial foi escrito pelo jornalista Diego Escosteguy e publicado no site O Bastidor nessa quinta-feira.

O site “O Bastidor” publicou na noite dessa quinta-feira (20), um editorial sobre a resolução aprovada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que dispõe sobre o “enfrentamento à desinformação que atinja a integridade do processo eleitoral”. No texto crítico, o jornalista Diego Escosteguy chama o TSE de “tribunal da verdade” e o presidente da Corte, Alexandre de Moraes, de “editor da República”.

Confira o texto na íntegra:


Especial: o editor da República

O TSE aprovou hoje (quinta, 20 de outubro) uma resolução que consagra a corte como tribunal da verdade e seu presidente, editor da República. Ao menos até o dia 30 de outubro, data do segundo turno, a livre circulação de ideias políticas durante as eleições, ápice da liberdade de expressão como valor necessário a uma democracia, estará oficialmente subordinada ao juízo - e ao capricho - de somente um dos 212 milhões de brasileiros: o ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral.

A afirmação parece hiperbólica. Não é. A nova resolução do TSE parece saída da mente de George Orwell, Ray Bradbury ou Mikhail Bulgákov. A pretexto de "enfrentar a desinformação no processo eleitoral", a resolução escrita por orientação do próprio Moraes confere a ele poderes extraordinários, desconhecidos em qualquer democracia liberal.

A partir de hoje e até dia 30, o presidente do TSE poderá determinar a exclusão - censura, na acepção contemporânea - de conteúdos que julgar desinformativos, desde que esses conteúdos já tenham sido julgados desinformativos pela corte. (Aqui, há uma pegadinha, que se explicará abaixo.)

Moraes poderá suspender temporariamente contas, perfis e canais que produzam sistematicamente, sempre na visão dele, "desinformação". O presidente do TSE terá o poder de determinar, de ofício, a proibição de acesso dos brasileiros a plataformas - sim, a plataformas inteiras, como YouTube e Facebook - que, na avaliação do ministro, descumpram de modo "reiterado" as "determinações" da resolução.

Ademais, a resolução (leia a íntegra abaixo) estabelece que as plataformas terão prazo mais exíguo (duas horas) para cumprir ordens do TSE de exclusão de conteúdo. Cria multas - o que, por sinal, não deveria ser feito via resolução. Além disso, proíbe propaganda paga na internet até 48 horas antes da votação e 24 horas depois. São questões menores.

O problema central de uma atuação já problemática está na combinação dos artigos 3 (exclusão de "conteúdo idêntico" já julgado - pelo TSE - como desinformativo), artigo 4 (suspensão temporária de contas, canais e perfis que divulguem "desinformação) e artigo 5 (suspensão temporária das próprias plataformas, em caso de descumprimento da resolução). A suspensão de plataformas, prevista no artigo 5, não é sequer prevista em lei.

O novo texto oferece a Moraes a possibilidade de censurar conteúdo (artigo 3), punir pessoas e empresas alheias às eleições por seus discursos políticos (artigo 4) e impedir o acesso de todos os brasileiros a plataformas de vídeo ou redes sociais (artigo 5). Mediante esse combo que se concretiza pelo apelo ao poder de polícia, com decisões sem direito à ampla defesa e ao contraditório, Moraes usurpa o próprio colegiado do TSE.

São, portanto, poderes de um censor, atribuições estranhas às da Presidência do Tribunal que deveria conduzir com equidistância e razoabilidade as eleições no país. Ferem o direito de acesso à informação, previsto na Constituição, no momento em que ele é mais essencial: numa eleição.

Nesse aspecto fundamental, o arcabouço do TSE deixa de ser a legalidade ou ilegalidade eleitoral das ações e falas dos candidatos. Resume-se a um juízo de oportunidade e conveniência sobre a natureza de discursos e das consequências deles, um juízo determinado aparentemente por preferências ideológicas e simpatias momentâneas. Ao se distanciar das atribuições da Justiça Eleitoral, Moraes e a maioria dos seus pares produzem uma desordem institucional, em que decisões sobre a validade ou não de discursos políticos revelam-se incoerentes e desprovidas de critérios objetivos.

Daí a multiplicação de casos confusos e teratológicos, em que aparecem expressões como "desordem informacional" para justificar censura até de discursos factualmente corretos. Daí a contradição, entre tantas outras, entre o que pode e o que não pode ser dito. Lula pode chamar Bolsonaro de "fascista", "miliciano" e "genocida". Bolsonaro não pode chamar Lula de "ex-presidiário", "corrupto" e termos relativos. Daí até a censura prévia - inconstitucional, por definição - de um documentário. Daí a censura a veículos (a coloração ideológica deles não deveria interessar). O tumulto é tamanho que até o ex-ministro do Supremo Marco Aurélio Mello foi censurado ao expor sua opinião sobre a situação jurídica de Lula.

Diante de um TSE conflagrado por essa desordem institucional, a plateia fica confusa. Ou seria desinformada? Alguns correram para dizer, no afã de defender o novo modelo de censura de Moraes, que a lei proíbe propaganda eleitoral negativa. Verdade. Mas essa vedação aplica-se aos candidatos e às suas campanhas, e não a jornalistas ou a quaisquer cidadãos - que podem, por lei e resolução eleitoral, sem contar a Constituição, dizer o que bem quiserem. E podem - devem - ser responsabilizados pelo o que disserem, em caso de ilícito.

A propaganda oficial sobre a nova resolução

Moraes vendeu a nova resolução como um simples instrumento para agilizar a exclusão de conteúdos já determinados como "desinformativos" pelo TSE. No ecossistema digital de informação em que vivemos, a amplificação e a disseminação viral de conteúdos são comuns. Diante dessa constatação, disse o presidente do TSE, pessoas e candidatos burlam decisões do tribunal por meio da reprodução do mesmo conteúdo em outras plataformas ou endereços. Nada mais racional, portanto, do que permitir ao TSE agir para excluir "conteúdos idênticos" aos já excluídos - ou censurados. Tacitamente, basta aplicar um critério simples: identificar o mesmo conteúdo em outro lugar - e mandar tirar do ar. Um ato mecânico.

Fora a premissa questionável de que o TSE deveria se meter amiúde em juízos epistemológicos do debate político, tornando-se uma agência de checagem com poderes legais, falta combinar com os algoritmos das plataformas e com o comportamento das pessoas nas redes. De modo proposital ou não, Moraes esquece que a criação é um elemento central do ecossistema digital de troca de informações. Dificilmente haverá "casos idênticos", como alguns podem ser levados a crer. Na prática, temos recortes, mudanças sutis de texto, edições novas e maneiras cifradas de transmitir a mesma mensagem censurada. É desse tipo de material que plataformas como TikTok se alimentam - e as campanhas também.

Como sabe qualquer um que trabalhe no ramo, basta um ponto de interrogação ou um emoji para modificar o "idêntico" e transformá-lo num outro conteúdo semelhante ao censurado - e com o mesmo potencial de destruição. E esse trabalho incessante de criação e reciclagem é feito organicamente, por milhões de pessoas que apoiam os dois candidatos.

É por isso que, na primeira versão da resolução, Moraes disse aos ministros que queria usar o termo "conteúdos equivalentes" - ainda mais aberto. Houve resistência de colegas do Supremo. Ele se contentou com "idênticos". Mas, ao analisar os casos concretos nos próximos dias, como Moraes e sua equipe vão avaliá-los? Será que o "idêntico" será "idêntico" mesmo, sem tirar vírgula? A mera discussão já expõe a porta que o TSE abriu para moderar o conteúdo das eleições. Os casos do "pintou um clima" e das condenações de Lula estão aí como amostra da encrenca. A esta altura dela, pouco se fala da previsão expressa do próprio TSE em resolução de 2019. Diz o artigo 38 dessa resolução: "A atuação da Justiça Eleitoral em relação a conteúdos divulgados na internet deve ser realizada com a menor interferência possível no debate democrático".

A nova resolução também permite a Moraes escapar ainda mais das proteções jurisdicionais daqueles que podem ser afetados por essas decisões administrativas. Isso já estava ocorrendo ao arrepio de própria resolução de 2019 do TSE. Ela que exclui, em seu artigo 28, expressamente cidadãos comuns da fiscalização de propagandas eleitorais. Mas, com a nova resolução de hoje, qualquer pessoa, em tese, que participe do debate eleitoral na internet está sujeita à jurisdição do TSE - e pode sofrer censura e mesmo punição sem que a corte tenha, legalmente, competência para isso.

A ausência relativa do Ministério Público favorece ainda mais a concentração de poder do TSE em Moraes. O MP é representado no TSE pelo respeitado Paulo Gonet, vice Procurador-Geral Eleitoral. Gonet, entretanto, permanece mudo nas sessões; não é acionado nem procura se manifestar. Talvez por saber que seria inócuo. Desde que Moraes assumiu a Presidência da corte eleitoral, o ministro articulou para centralizar decisões, formar maioria e acuar posições divergentes. Quando Kassio Nunes Marques virou ministro-substituto do TSE, caberia a ele julgar casos de propaganda eleitoral. Numa manobra inédita, Moraes manteve os casos de propaganda com Cármen Lúcia, apesar de ela ter se tornado ministra-titular. Assim, logrou estabelecer a maioria magra que se revela nas decisões colegiadas do tribunal. Ao lado de Moraes, estão Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Benedito Gonçalves. Este é corregedor Eleitoral e ministro do STJ. Na minoria, estão os ministros Raul Araújo (STJ), Sérgio Banhos (advocacia) e Carlos Horbach (advocacia).

O leitor mais atento há de notar a ausência dos nomes dos ministros Paulo de Tarso Sanseverino e Maria Claudia Bucchianeri. Eles são substitutos. Como tal, costumam julgar as representações das coligações - dando decisões liminares que, com frequência, caem quando os sete ministros titulares avaliam os casos. Numa mudança inédita, Moraes definiu que ministros do Supremo também podem julgar esse tipo de caso. Aumentou, assim, o controle sobre os processos. É fina a harmonia entre o presidente do TSE e o corregedor, ministro Benedito Gonçalves. Foi este quem abriu investigações eleitorais controversas nos últimos dias, envolvendo dezenas de perfis associados pelo PT à campanha de Bolsonaro e até veículos de comunicação.

Os árbitros da verdade e da mentira

Para compreender a gravidade da resolução, contudo, é imprescindível entender o contexto em que ela se insere. Embora Moraes tenha prometido uma intervenção mínima no chamado combate à desinformação, agindo somente em casos de incontroverso dano, o ministro e seus colegas entregaram, nas últimas semanas, decisões maximalistas, nas quais interferiram no choque de ideias políticas entre os candidatos a presidente. Ao contrário de eleições anteriores, o TSE achou por bem arrogar-se a prerrogativa - não prevista legal ou constitucionalmente - de arbitrar o que é verdade ou mentira no debate político. A história ensina que quem adentra esse terreno dele não sai limpo.

A partir de uma resolução de 2021, a corte, em vez de respeitar o Congresso, a quem cabe debater e criar leis, estabeleceu que poderia regular desinformação. Diz o artigo 9 dessa resolução, um artigo constantemente usado como fundamento para as decisões recentes do dito combate à desinformação: "É vedada a divulgação ou compartilhamento de fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinja a integridade do processo eleitoral, inclusive os processos de votação, apuração e totalização de votos, devendo o juízo eleitoral, a requerimento do Ministério Público, determinar a cessação do ilícito, sem prejuízo da apuração de responsabilidade penal, abuso de poder e uso indevido dos meios de comunicação". (O TSE deixa de lado o Ministério Público nesses casos, mas isso nem é mais assunto.)

O leitor poderia objetar que o TSE estaria tratando somente da "integridade do processo eleitoral" - ou seja, de ataques infundados às urnas eletrônicas. (Não há nada que proíba legalmente esse tipo de crítica, a propósito.) Seja como for, esse dispositivo é usado para avaliar qualquer caso de "desinformação". A tal ponto que a expressão "divulgação de fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados" virou padrão nas decisões do TSE. Não à tôa, a mesma expressão aparece na resolução aprovada hoje. (Como demonstração da amplitude do conceito, basta ver abaixo o preâmbulo oral de Moraes na sessão de hoje que aprovou a resolução.)

Numa resolução de 2021, porém, o TSE, seguindo a Lei Eleitoral de 1997, fora comedido. Reafirmara a vedação à censura e limitara seu poder de polícia. Textualmente: "O poder de polícia se restringe às providências necessárias para inibir práticas ilegais, vedada a censura prévia sobre o teor dos programas e das matérias jornalísticas a serem exibidos na televisão, na rádio, na internet e na imprensa escrita". E mais: "Caso a irregularidade constatada na internet se refira ao teor da propaganda, não será admitido o exercício do poder de polícia". Este trecho da resolução, não por acaso, inclui a necessidade de se respeitar artigos específicos do Marco Civil da Internet - que, por sua vez, também privilegia a defesa da liberdade de expressão.

Ainda no campo jurídico, vale relembrar decisões colegiadas do Supremo. Num passado não tão distante, a Corte Suprema colocou a liberdade de expressão - e, dentro dela, a de imprensa - no centro da democracia brasileira, ao abolir a Lei de Imprensa que vigia desde a ditadura militar (ADPF 130). Como disse a ministra Carmen Lúcia, "Cala a boca já morreu". Em 2015, a corte considerou constitucionais biografias não autorizadas. Logo depois, sob a mesma mentalidade, o tribunal julgou que a livre manifestação de pensamento nas universidades é soberana e não pode sofrer interferências externas.

Em 2018, sob relatoria de Alexandre de Moraes, o mesmo Supremo aboliu censura prévia a sátiras e conteúdos humorísticos em eleições (ADI 4451). As palavras de Moraes naquele julgamento merecem citação integral: "O direito fundamental à liberdade de expressão não se direciona somente a proteger as opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também aquelas que são duvidosas, exageradas, condenáveis, satíricas, humorísticas, bem como as não compartilhadas pelas maiorias. Ressalte-se que, mesmo as declarações errôneas, estão sob a guarda dessa garantia constitucional".

Até a eleição de Bolsonaro em 2018, havia tutela do TSE sobre discurso político nas eleições. Sobretudo quanto a propagandas irregulares dos candidatos e a aplicação de direitos de resposta. Os exames de fato sobre verdade, mentira ou desinformação eram raros. O que mudou?

A inflexão remonta a março de 2019. Foi ali que começou a atuação de Moraes como juiz da verdade, em inquérito inquisitorial ("inquérito das fake news"), que violava e viola o devido processo legal. Naquele momento, o objetivo era investigar ataques à honra do Supremo e de seus ministros. Esses “ataques” não vinham de Bolsonaro, mas de investigações que chegavam perto do ministro Dias Toffoli. Todas as pessoas sensatas do país foram contra, após caso de censura jornalística. A Rede acionou o próprio Supremo. Em 2020, quando Bolsonaro passou a criticar e a atacar a corte, esse processo se purificou - e, mesmo eivado de vícios, passou a abarcar todo e qualquer “ataque” e “fake news” contra ministros do Supremo. Após anos e anos de investigação, não há denúncia oferecida pelo Ministério Público. Recursos não foram julgados. (Após Bolsonaro partir para cima do Supremo, os ministros declararam constitucional o inquérito das fake news.)

O que transcorre agora no TSE é o desdobramento jurídico e lógico do que começou em março de 2019. Dificilmente acabará no dia 30 de outubro.

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