A fila de brasileiros que espera pelo Bolsa Família já chega a 3,5 milhões de pessoas, o que representa 1,5 milhão de famílias de baixa renda. O gargalo tem provocado um princípio de colapso na rede de assistência social de municípios, sobretudo os pequenos e médios. Sem o dinheiro do programa social, a população voltou a bater à porta das prefeituras em busca de comida e outros auxílios. São os chamados benefícios eventuais, demandas que sobrecarregam as combalidas finanças das prefeituras.
O Estado chegou ao número analisando o banco de dados do próprio governo. No final de janeiro, o Ministério da Cidadania informou por meio de Lei de Acesso à Informação (LAI) que a lista de pedidos para entrar no programa de transferência de renda seria três vezes menor, de 494 mil famílias.
Em Surubim, a 120 quilômetros do Recife, no interior de Pernambuco, os pedidos de cestas básicas apresentados pela população pobre da cidade dobraram no segundo semestre do ano passado. A prefeita Ana Célia de Farias (PSB) precisou fazer um aditivo ao contrato para a distribuição de alimentos. Gestores do Bolsa Família do município de 70 mil habitantes avaliam que o crescimento da demanda por atendimentos na prefeitura se deve ao congelamento de novos benefícios do programa de transferência de renda do governo federal.
“São noves meses de uma fila de espera que só aumenta. E tem uma demanda que se reverte para a gestão municipal. Quem não tem acesso recorre à prefeita”, contou Penélope Andrade, vice-presidente do Colegiado Estadual de Gestores da Assistência Social de Pernambuco e técnica do Programa Bolsa Família em Surubim. No município de Picuí, a 240 quilômetros de João Pessoa, na Paraíba, o prefeito Olivânio Remígio (PT) disse ter registrado um crescimento na quantidade de apelos de moradores de baixa renda. “São pessoas que perderam o emprego devido à recessão econômica e precisam do Bolsa Família. Nos procuram para podermos arcar com esse ônus. Está sufocando a prefeitura”, disse ao Estado.
À frente de um município de 18 mil moradores, o prefeito afirma que vive uma situação difícil em não atender todos que apelam por ajuda. Ele conta que os pais já dependeram, há 20 anos, de programas do governo federal. “Já tem fila nos nossos próprios programas sociais, como aluguel social, pedidos para pagar conta de energia. A procura aumentou muito diante da redução de benefícios sociais (como Bolsa Família e Benefício da Prestação Continuada, o BPC). E a arrecadação municipal é baixa”, lamentou.
Dados do Ministério da Cidadania apontam uma queda brusca no volume de concessões do benefício a partir de maio de 2019. Naquele mês, 264.159 famílias foram incluídas na lista de beneficiários. A partir de junho, as entradas caíram para 2.542 e, até outubro, quando os dados mais recentes foram publicados no Cecad, o volume permanecia neste patamar.
Ao Estado, o ministério reconheceu a redução no número de inclusões de famílias nos últimos meses e disse que isso será normalizado “com a conclusão dos estudos de reformulação do Bolsa Família”. No entanto, técnicos consultados pela reportagem apontam que a redução drástica pode ter sido uma manobra para garantir o caixa necessário ao pagamento do 13º do benefício, promessa da campanha eleitoral do presidente Jair Bolsonaro. Na nota, a pasta pontuou, ainda, que as concessões também dependem de “estratégias de gestão da folha”.
Como de maio para cá não houve variação significativa nos níveis de pobreza no País, o congelamento das novas entradas preocupa gestores municipais. “Os benefícios sociais são dinheiro que circula na economia local. Sem eles, deixa de circular dinheiro. Sofrem a economia local e as pessoas mais carentes”, afirmou Denilson Magalhães, supervisor do núcleo de Desenvolvimento Social da Confederação Nacional dos Municípios.
O Ministério da Cidadania está em processo de transição. Onyx Lorenzoni, ex-ministro da Casa Civil, foi designado para substituir o ex-ministro Osmar Terra. A troca ocorreu após o Estado revelar a contratação, na gestão de Osmar, de uma empresa suspeita de ter sido usada como laranja para desviar R$ 50 milhões dos cofres públicos. Antes de demitir Osmar Terra do ministério, que deixou o cargo essa semana, Bolsonaro ligou para o então ministro para reclamar da fila. Uma dor de cabeça que aumenta num ano eleitoral.
Pobreza. De acordo com as regras do governo, o Bolsa Família deve atender todas as famílias em extrema pobreza, aquelas com renda familiar de até R$ 89 per capita. Também têm direito ao benefício as famílias em situação de pobreza, ou seja, com renda per capita de até R$ 178 por mês, desde que tenham pessoas com entre 0 e 17 anos na composição. Para pleitear o programa, precisam estar com a inscrição no Cadastro Único feita ou atualizada nos últimos 24 meses.
O levantamento do Estado que identificou a falta de assistência para 3.556.454 pessoas de 1.550.600 famílias é conservador. Levou em conta somente as situadas na extrema pobreza e com cadastros atualizados apenas ao longo de 2019.
Conforme os números apurados pelo Estado, o Nordeste é onde está a maior parcela de defasagem. Das 1,5 milhão de famílias, 606.835 estão distribuídas pelos nove estados da região, o que corresponde a 39,1% das famílias que deveriam ser beneficiárias, mas não são. Outros 36,8% estão espalhados pelo Sudeste, um total de 571.609.
De acordo com dados compilados por secretários Estaduais de Assistência Social do Nordeste para um fórum realizado por eles no início de fevereiro, 100 mil famílias entraram para o Bolsa Família em janeiro, sendo apenas 3.035 delas da região mais pobre do País. O maior volume de liberações foi para o Sudeste, 45.763.
A fila para ter acesso ao benefício não surgiu no governo Bolsonaro. Técnicos relatam que ela é característica do programa. O que muda, no entanto, é a ausência de perspectiva para que ela diminua. Antes, com a meta de atendimento de 13,9 mi de famílias, a gestão do Bolsa Família podia diminuir expressivamente a fila ao longo de um ano calendário. Famílias saiam em consequência de processos administrativos, mas outras podiam entrar. Havia orçamento para isto. Hoje, o programa não tem previsão orçamentária para passar dos 13,1 milhões de famílias. O que não prática resulta num corte permanente de quase 1 milhão de famílias. A porta está fechada.
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