O plenário da Câmara dos Deputados aprovou requerimento de urgência para a votação do projeto que afrouxa a Lei de Improbidade Administrativa, na tarde desta terça-feira, 15, apenas oito minutos após a divulgação do relatório final, de autoria do deputado Carlos Zarattini. A pretexto de proteger os bons gestores, o substitutivo do relator abre caminho para a impunidade ao restringir as possibilidades de condenação de agentes públicos.
O texto admite, por exemplo, a prática de nepotismo se os parentes conduzidos a cargos públicos tiverem bom currículo, contrariando o Supremo Tribunal Federal (STF). A votação do projeto no plenário deve ser feita nesta quarta-feira, 15.
A análise do requerimento de urgência não estava prevista na pauta do plenário da Câmara para esta terça-feira nem foi discutida na reunião de líderes dos partidos, mais cedo. O painel de votação registrou 369 votos a favor da urgência e 30 contra. “É uma questão de vida ou morte para o País, e para a classe política, conseguir atrair para o serviço público aquelas pessoas com visão, com competência, com idoneidade”, disse o deputado Enrico Misasi (PV-SP).
A deputada Vivi Reis (PSOL-PA) orientou contra a votação, afirmando que é preciso debater melhor o mérito do projeto. O presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), respondeu à deputada, dizendo que houve amplo debate e que o projeto “não chegou e caiu do céu".
Zarattini foi na mesma linha e lembrou que a proposta está em discussão na Comissão Especial desde julho de 2019. “Apresentei um relatório em outubro do ano passado. O projeto está bem discutido, está amadurecido e nada disso foi feito de supetão. Não vai haver surpresa sobre o que está sendo votado”, argumentou o relator.
O autor do projeto, Roberto de Lucena (Podemos-SP), disse ter havido um atropelo. Na sexta-feira, Lucena defendeu uma primeira votação na Comissão Especial criada para discutir a matéria, mas foi ignorado. Insatisfeito, o deputado afirmou que pode requerer a retirada da tramitação. A estratégia, porém, tem chance de ser recusada por Lira.
“Considero a possibilidade de retirar de tramitação a proposta, que é fruto de um árduo trabalho de muitas mãos, mas que, infelizmente, foi transformada num cavalo de Troia”, disse Lucena ao Estadão. “A alternativa é um destaque de preferência para que seja apreciado o nosso texto, e não o substitutivo”. O deputado afirmou, ainda, estar conversando com líderes e integrantes das frentes evangélica e de combate à corrupção nesse sentido.
O projeto altera diversos pontos da Lei de Improbidade, criada em 1992 em um contexto de pressão popular por aprimorar a legislação contra a corrupção, na época em que o então presidente Fernando Collor renunciou para escapar do impeachment. Com as mudanças, fica mais difícil um agente condenado por improbidade perder a função pública, uma vez que basta ele ter trocado de cargo para escapar da punição. Um prefeito que desvia recursos e é alvo de ação de improbidade, por exemplo, não será mais demitido se, no meio do caminho, tiver passado a ocupar cargo de deputado.
O Supremo proíbe, em sua Súmula 13, a “nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau” da pessoa responsável pela indicação ao cargo, independentemente da qualificação técnica.
O relatório de Zarattini, que tem o aval de Lira e do líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (Progressistas-PR), impede a punição se houver “adequada capacitação”. O texto diz, ainda, que se políticos com mandatos eletivos fizerem indicações de parentes será preciso “aferição de dolo com finalidade ilícita por parte do agente” para punição.
“É uma espécie de salvo conduto para o nepotismo, porque se exige comprovação específica com elementos subjetivos, como se nós criássemos uma figura de um nepotismo brando e um nepotismo terrível. Nepotismo é nepotismo. Basta que se contrate parente e se tem o nepotismo. Essa regra, da forma como está escrita, visa não responsabilizar quem pratica o ato”, disse Roberto Livianu, procurador de Justiça em São Paulo e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção.
Uma outra mudança que pode livrar de punição agentes desonestos é a limitação do prazo de prescrição, ou seja, o limite de tempo que o Estado tem para punir um infrator. Atualmente, uma vez que a lei é apresentada, não há prazo para conclusão, daí a necessidade de definir um marco temporal. Mas o prazo estabelecido no substitutivo, de prescrição após quatro anos da apresentação da ação, é em muitos casos considerado insuficiente pelos órgãos de investigação e controle.
Também se torna mais difícil bloquear os bens de acusados de desvio de verba pública, pois se cria uma necessidade legal de comprovar que o réu está se desfazendo dos bens ou atuando para impedir a execução de uma sentença no futuro.
Outra mudança do projeto é a que livra os denunciados que forem absolvidos por falta de provas de responder a ações de improbidade na esfera penal. Atualmente, a lei prevê que as ações na esfera cível — como as de improbidade — podem seguir mesmo se uma acusação de corrupção, por exemplo, não resultar em condenação.
Se essa mudança entrar em vigor, as ações penais da Lava Jato, nas quais faltaram provas para sustentar delações premiadas, não poderão se reverter em punição por improbidade. "O projeto cria uma indevida subordinação automática das ações de improbidade às ações penais, violando o princípio da separação de poderes e de instâncias", disse ao ex-advogado-geral da União Fabio Medina Osório.
Prejuízo
O projeto também exclui a possibilidade de governos federal e estaduais, prefeituras e empresas públicas apresentarem ações de improbidade se tiverem sido prejudicados. A advocacia pública, hoje, tem legitimidade para representar os entes lesados por atos de improbidade, mas deixará de ter se a proposta for aprovada como está. Parecer da Advocacia-Geral da União e do Ministério da Justiça enviado à Câmara na tramitação do projeto classificou esse ponto como retrocesso.
Na prática, se estivesse valendo há alguns anos, a mudança dificultaria o ressarcimento da Petrobrás e a responsabilização de empresas, como as empreiteiras da Lava Jato que assinaram acordo de leniência para fugir de punições.
O presidente da Associação Nacional dos Advogados da União (ANAUNI), Clóvis Andrade, reforçou a preocupação. “Esse projeto de reforma da Lei de Improbidade, na forma do parecer do relator, enfraquece muito o combate à corrupção. Ao retirar dos órgãos de representação dos entes lesados, entre eles a AGU, a possibilidade de ajuizar a ação de improbidade, impede a continuidade de um trabalho que vem dando certo, proporcionando o retorno de bilhões de reais aos cofres públicos”, disse Andrade. “Além disso, exclui a punição a condutas culposas, exigindo, em vários pontos, o dolo finalístico (aquele em que se busca o enriquecimento ilícito) para a sanção ao agente, o que às vezes é dificílimo de provar”.
Coordenadora da Frente Ética Contra a Corrupção na Câmara, a deputada Adriana Ventura (Novo-SP) critica a forma como o projeto tem sido conduzido. “É muito ruim o que está acontecendo aqui na Câmara: avaliarmos um projeto desta magnitude direto no plenário, sem estudo prévio do texto, sem discussões e sem a participação da sociedade civil. Aprovamos às 17h19 a urgência de um Projeto que teve seu último texto apresentado às 17h10 no sistema da Câmara. Como avaliar o texto de forma equilibrada com esse açodamento?“, protestou Ventura.
O diretor-executivo da Transparência Internacional, Manoel Galdino, cobrou adiamento da votação para realização de debate. Na sua avaliação, o projeto originalmente apresentado, com base em estudo de um grupo de trabalho integrado por juristas e advogados, era equilibrado, mas o substitutivo “vai desfigurar” a lei de improbidade administrativa e aumentar a impunidade e a corrupção no Brasil.
“É muito difícil fazer em pouco tempo destaques e emendas que corrijam os problemas do texto, porque são muitos. Eles deveriam pelo menos adiar uma votação, fazer uma discussão mínima, para que se possa retomar o projeto original, fazer ajustes. É melhor deixar a Lei de Improbidade Administrativa como está do que a toque de caixa desconfigurar a lei”, disse Galdino.
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