Mais de dez dias depois de deixar a Venezuela, Adrian Cortez, 30, comemora ter chegado bem a San José, na Costa Rica, em uma viagem que faz em grande parte a pé com destino aos Estados Unidos. A rota escolhida por ele e outros 28 mil venezuelanos somente este ano foi a do Estreito de Darién, uma selva montanhosa e fechada entre a fronteira da Colômbia e do Panamá, considerada uma das rotas migratórias terrestres mais perigosas do mundo, segundo a ONU.
Com a piora da situação econômica nos países vizinhos à Venezuela e com novas exigências de visto para esses migrantes na América do Sul e Central, o número de venezuelanos cruzando o estreito saltou mais de 900% desde o início de 2022. Pela primeira vez, eles representam o maior grupo a se arriscar na floresta tropical, segundo dados do governo do Panamá.
De janeiro a junho deste ano - último mês disponível - mais de 28.079 venezuelanos passaram de maneira irregular pela região de Darién. Muito acima dos 2.819 do ano anterior inteiro, e superando haitianos e cubanos que costumavam ser os maiores grupos nesta fronteira até 2021. A situação preocupa organizações internacionais humanitárias, já que a travessia é extremamente perigosa por causa das condições terrestres da selva e da existência de grupos criminosos.
Embora os EUA sejam o desejo de grande parte dos venezuelanos que emigram, a maioria procurava os países da própria América Latina, mesmo que de maneira provisória. A Colômbia é o país que mais recepciona, com mais de 2,4 milhões. Em seguida vem Peru (1,3 milhão), Equador (513.000) e só então EUA (465.000). Dos mais de 6 milhões de venezuelanos deslocados no mundo, mais de 5 milhões estão na América Latina e Caribe.
Especialistas apontam uma série de fatores para esta mudança no comportamento migratório, entre eles: rota mais barata, piora na situação econômica dos países que costumam recepcionar esses imigrantes, novas exigências de visto na região e até o novo giro à esquerda dos países latino-americanos, que causam temores em venezuelanos que os associam ao regime chavista.
“Muitos desses venezuelanos já eram imigrantes na América do Sul e não têm intenção de voltar para a Venezuela, mesmo com a piora na economia da região. Então o que eles vão fazer é procurar outros países para emigrar, e é por isso que vemos esse salto no cruzamento por Darién”, explica María Isabel Puerta Riera, professora de Ciência Política e Internacional no Valencia College na Flórida.
“A pandemia praticamente obrigou a economia a entrar em recessão a nível mundial, e nos países do Sul isso foi sentido de forma muito mais dura. Isso repercute no trabalho. Esses imigrantes não conseguem emprego e não conseguem manter a sua subsistência. Então, em vez de retornar à Venezuela - porque muitos fizeram isso - ele simplesmente decidiram buscar outros países”.
É o caso de Adrian Cortez, que decidiu arriscar a rota porque não encontrava emprego no país natal, onde costumava atuar como cozinheiro. Deixou a mãe e a avó na Venezuela, na intenção de encontrar trabalho nos EUA e lhes enviar dinheiro. “Entrar na selva de Darién foi a pior experiência da minha vida”, conta. “Você vê corpos, violências, exaustão... Fiquei dois dias sem comer porque me roubaram a comida”.
Novas barreiras
A rota comum de quem planejava migrar aos Estados Unidos era ir por terra até um país vizinho e então viajar de avião até o México ou outros países da América Central, evitando o Estreito de Darién. Mas desde o início do ano, países como México, Costa Rica e Belize passaram a exigir vistos, em uma medida que especialistas apontam ser uma pressão direta do governo americano para conter as caravanas de migrantes. Com isso, os três países se somam a Panamá, Honduras e Guatemala que já exigem visto desde pelo menos 2017.
“Quando visitamos Darién, muitos venezuelanos nos contaram que a razão pela qual tiveram que atravessar por lá é a imposição de vistos pelo México e outros países da América Central que os impossibilitava de voar mais ao norte e, portanto, eram obrigados a atravessar o Darién ao migrar para os EUA”, afirma Tamara Taraciuk Broner, vice-diretora da Divisão das Américas da Human Rights Watch.
“Ainda é difícil e caro para os venezuelanos obter um passaporte, o que também dificulta a obtenção de um visto”, completa. Tirar um passaporte na Venezuela custa atualmente mais de 1.000 bolívares soberanos (US$ 200).
As medidas, no entanto, não impediram o fluxo migratório, apenas expôs os migrantes a maiores riscos. Em janeiro eram menos de 2.000 os venezuelanos cruzando por Darién, em junho já foram mais de 11.000, e o governo do Panamá alerta que o número só tende a crescer. “Enquanto a situação nos países de origem for a mesma e os expulsar, os migrantes continuarão a sair, mesmo se isso signifique expor-se a sérios perigos como os de Darién”, reforça Broner.
Além disso, o principal país receptor, a Colômbia, também endureceu suas regras aos venezuelanos. O governo de Iván Duque criou o Estatuto Temporário de Proteção, que garante acesso a emprego formal, saúde e educação, mas somente para aqueles que entraram de maneira irregular até 21 de janeiro de 2021. Quem entrou depois, está desprotegido e prefere continuar caminhando.
A isso se soma a chegada de Gustavo Petro à presidência da Colômbia que, embora tente não se colar à imagem de Nicolas Maduro - como quase toda a nova onda de esquerda tem feito - somente sua posição esquerdista já deixa os migrantes apreensivos. “Uma vez que Gabriel Boric ganha no Chile, Pedro Castillo no Peru e agora Petro na Colômbia, o venezuelano entende que isso é uma mensagem”, afirma Puerta Riera. “Isso aconteceu na Argentina, quando Alberto Fernández ganhou muitos venezuelanos deixaram o país porque o ligaram ao fenômeno chavista”.
Rota perigosa
O Estreito de Darién é uma selva úmida, extremamente fechada e montanhosa que interrompe a Rodovia Pan-Americana na fronteira entre Colômbia e Panamá. Para cruzá-la, os grupos migratórios vão de transporte terrestre - ou aquático a depender de onde vão entrar - até o limite do território colombiano, então pagam guias para ajudá-los a caminhar de cinco a dez dias dentro da mata.
O trajeto precisa ser feito de forma rápida, para evitar que alimentos e água se acabem, e somente ao longo da luz do dia, tornando os descansos raros e apenas quando chegam a aldeias indígenas. “O primeiro risco é a extenuação do próprio percurso”, conta Marisol Quiceno, responsável por assuntos humanitários da organização Médicos Sem Fronteiras na Colômbia. “As caminhadas são longas, associadas com um clima úmido, com escaladas de montanhas e falésias.”
“Além disso, as pessoas estão enfrentando situações de violência sexual e violência em geral. Nessa rota existem grupos que estão estuprando todas as mulheres. De abril do ano passado a julho deste ano fizemos 456 atendimentos por violência sexual, todos por estupro”, contabiliza.
O venezuelano Manuel Monterrosa, 34, conta que pensou em desistir várias vezes durante o caminho, mas não o fez porque retornar era tão perigoso quanto continuar. Ele fez a travessia no início deste ano e hoje se encontra em Miami. Deixou a Venezuela porque já não aguentava não ter dinheiro para comer ou outras coisas básicas, diz. Mas relata que cruzar o Darién foi a pior experiência de sua vida e desaconselha a outros.
“Entramos com um grupo de umas 800 pessoas, mas eu calculo que cerca de 80 saíram em seis dias, ou seja, o resto das pessoas ficou dentro da selva e é uma selva muito dura”, relata. “Eu sou jovem, considero que tenho alguma preparação física, e me deu muita dor ver as pessoas que ficaram, se arrependendo muito, e você não pode fazer nada porque precisa sair antes que acabe a água e a comida”.
Ele foi filmando todo o trajeto e quando já estava seguro nos EUA montou uma série no YouTube para mostrar os perigos da viagem. “Passar por Darién é uma experiência que marca a sua vida porque você vê cadáveres pelo caminho, vê pessoas perdidas. Encontramos um árabe do Quirguistão que estava perdido por três dias em uma montanha chamada ‘montanha da morte’ com seu filho, incapaz de falar espanhol, praticamente bebendo lama porque não tinha água”.
O que impressionou Monterrosa e também Cortez foi encontrar muitas crianças pelo caminho. Segundo dados do governo do Panamá, mais de 7.000 menores de idade já cruzaram a selva, alguns inclusive são encontrados desacompanhados, alerta a Organização Internacional para as Migrações. A travessia de famílias inteiras é o que mais preocupa os trabalhadores do Médicos Sem Fronteiras porque a presença de crianças, mulheres grávidas e idosos torna o trajeto mais longo.
“Nossa maior preocupação é com os casos de violência sexual, em que 11%, por exemplo, ocorrem com crianças entre 9 e 14 anos”, afirma Marisol Quiceno, do MSF. “Em alguns casos as famílias não conseguem continuar caminhando, então pedem para alguém, um estranho, levar a criança e essas crianças chegam sem nenhum registro familiar.”
A diretora da HRW alerta que a melhora maneira de evitar situações como esta é a regularização. “Devemos lembrar que a irregularidade abre as portas para a exploração laboral, xenofobia e possível tráfico de pessoas. E não é apenas um problema porque viola os direitos dos migrantes, mas também não contribui para melhorias substanciais para nenhum país.”
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