Por mais de 20 anos, a Estação Espacial Internacional (ISS, por sua sigla em inglês) tem servido não apenas como um laboratório orbital para a ciência, mas como um veículo para a diplomacia, hospedando astronautas de 19 países diferentes que trabalham lado a lado no espaço quando, em alguns casos, são seus líderes que não conseguem se dar bem no chão.
Do tamanho de um campo de futebol e voando pelo espaço a cerca de 28 mil km/h, a estação tem sido um símbolo de colaboração em tempos de guerras e turbulências, e é, para muitos na comunidade espacial, digna de um Prêmio Nobel da Paz por ser “o maior esforço internacional em tempos de paz na história humana”, como argumentou Dylan Taylor, um empresário espacial de longa data, em um blog de 2020.
Mas a frágil coalizão que manteve a estação espacial funcionando por todos esses anos está se enfraquecendo, à medida que as tensões entre a Rússia e os Estados Unidos, os dois principais parceiros da estação, crescem a níveis não vistos há anos. E enquanto os países mantiveram sua aliança na estação apesar das tensões geopolíticas, a proteção que manteve a estação e os empreendimentos espaciais civis isolados de outros problemas está começando a se desgastar.
A estação espacial "pode ser um ponto alto para as relações EUA-Rússia", disse Scott Pace, diretor do Instituto de Política Espacial da Universidade George Washington e secretário executivo do Conselho Espacial Nacional durante a administração Trump. “Mas não é invulnerável ... Se recomeçássemos hoje, não teríamos os russos como parceiros na estação. Isso foi feito em outra era, mais esperançosa.”
Hoje, a Rússia e os Estados Unidos estão em desacordo sobre várias questões, incluindo a possível invasão da Ucrânia pela Rússia. O governo Biden também impôs sanções aos líderes russos pelo envenenamento de Alexei Navalni, o líder da oposição e um dos maiores críticos do presidente russo, Vladimir Putin. Também impôs sanções à Rússia por sua interferência nas eleições dos EUA, bem como puniu as empresas russas por apoiarem hackers russos.
Para piorar a situação, o general David Thompson, o primeiro vice-chefe de operações espaciais da Força Espacial, disse recentemente ao Post que a Rússia e a China estão constantemente atacando satélites dos EUA de várias maneiras, incluindo lasers, bloqueadores e violações cibernéticas.
“As ameaças estão realmente crescendo e se expandindo a cada dia”, disse ele. “E é realmente uma evolução da atividade que vem acontecendo há muito tempo.”
As tensões violaram a santidade dos esforços espaciais civis dos países, que tradicionalmente têm sido protegidos de escaramuças militares e políticas.
No mês passado, a Rússia disparou um míssil que destruiu um de seus satélites meteorológicos desativados, criando um enorme campo de mais de 1.500 fragmentos que ameaçaram a estação espacial. Após o teste, os astronautas da NASA e os cosmonautas russos tiveram de se amontoar em suas espaçonaves, esperando para ver se a estação foi atingida e se eles teriam de abandoná-la para ir para casa.
O ataque com mísseis foi veementemente condenado por membros da administração Biden. “Ao explodir detritos pelo espaço, esse ato irresponsável colocou em risco os satélites de outras nações, bem como os astronautas da Estação Espacial Internacional”, disse a vice-presidente Kamala Harris, que preside o Conselho Espacial Nacional, no início deste mês.
O administrador da Nasa, Bill Nelson, chamou isso de "imprudente e perigoso" e disse que estava "indignado com essa ação irresponsável e desestabilizadora". Ele acrescentou que o ataque foi um ato dos militares e que acreditava que os membros da agência espacial russa “não sabiam de nada sobre isso". "E eles provavelmente estão tão chocados quanto nós”, disse.
No início deste ano, a Ars Technica relatou que oficiais russos acusaram a astronauta da Nasa Serena Auñón-Chancellor de perfurar um buraco na estação espacial durante uma crise pessoal. Depois que o artigo foi publicado, altos funcionários da Nasa saíram em sua defesa.
“Apoiamos Serena e sua conduta profissional”, escreveu no Twitter Kathy Lueders, administradora associada da Nasa, à diretoria da missão de operações espaciais. “Não acreditamos que haja qualquer credibilidade nessas acusações."
As tensões vão complicar os planos de estender a vida útil da estação espacial, que após mais de 20 anos no espaço, já mostra sinais de envelhecimento. Espera-se que o Congresso estenda a vida útil da estação até 2030, e a Nasa está planejando sua substituição. Em vez de construir uma estação pertencente e operada pelo governo, a Nasa quer ajudar as empresas comerciais a desenvolver estações próprias que possam então usar.
Este mês, a Nasa concedeu três contratos, no valor de US$ 415,6 milhões combinados, para a Blue Origin, Nanoracks e Northrop Grumman de Jeff Bezos, para iniciar o desenvolvimento de estações comerciais. Mas não está claro quando elas estarão prontas.
Para evitar uma lacuna nesse meio tempo, a Nasa precisa manter a ISS funcionando. Mas as ações da Rússia estão tornando isso complicado.
A ideia de colaboração internacional já existia há anos, mas finalmente foi aprovado em 1993 como parte de um esforço para fortalecer os laços com a Rússia e seu presidente Boris Yeltsin. Na época, o The Washington Post relatou que o governo Clinton "pintou a parceria russa como uma oportunidade histórica de transformar espadas em relhas de arado ou, mais literalmente, converter os mísseis mortais da Guerra Fria em caminhões pacíficos de longo curso para a instalação orbital".
A ISS foi “o produto de um momento bastante único em que o governo dos EUA estava procurando mudar o relacionamento que tinha com a Rússia após o colapso da União Soviética”, disse Brian Weeden, diretor de planejamento de programas do centro de estudos Secure World Foundation. A estação nasceu “por razões de política externa e para manter os cientistas e engenheiros soviéticos trabalhando no espaço, em vez de vender seus serviços pelo lance mais alto. É claro que essas condições mudaram.”
A tensão também é alimentada em parte pelo fato de que a Nasa não precisa mais pagar à Rússia para transportar seus astronautas até a estação espacial. Depois que a Nasa aposentou o ônibus espacial em 2011, a Rússia aumentou significativamente o preço dos lançamentos para a estação, chegando a cerca de US$ 85 milhões por assento e criando um fluxo constante de receita para a agência espacial em dificuldades.
Mas então veio a SpaceX de Elon Musk. Sob contrato da Nasa, ela restaurou voos espaciais humanos em solo dos EUA para a agência espacial no ano passado, encerrando sua dependência da Rússia. Isso, segundo Weeden, desestabilizou ainda mais o relacionamento.
“A SpaceX quebrou esse monopólio”, disse ele. “Os EUA não precisam mais da Rússia para chegar à estação espacial, e a SpaceX está comendo, se não destruindo, o negócio de lançamento comercial da Rússia no espaço. Portanto, a Rússia parece estar sob uma grande ameaça da SpaceX.”
A Rússia também indicou que está disposta a fazer parceria com a China, que começou a montar uma estação espacial própria na órbita da Terra. Mas, ao contrário da parceria com os Estados Unidos na ISS, a Rússia provavelmente não seria um parceiro igual na estação chinesa, disseram as autoridades.
Quanto a estender a vida da ISS, Weeden disse: "Politicamente, isso vai ser muito difícil de fazer depois do que aconteceu nos últimos anos."
Apesar da turbulência em terra, continua a haver uma forte cooperação entre os astronautas, engenheiros cosmonautas e líderes técnicos, que há muito colocam a política de lado. “Nós confiamos neles e operamos todos os dias com eles”, disse Pace. Astronautas americanos estudam russo e trabalham e vivem por longos períodos na Rússia, saindo com uma compreensão da cultura e respeito por seus colegas.
Permanecer unidos por meio do programa espacial garantirá que os dois países compartilhem os mesmos interesses e trabalhem juntos para manter vivos os astronautas e cosmonautas que vivem juntos na estação espacial. A Rússia anunciou recentemente que enviaria uma cosmonauta, Anna Kikina, para voar na espaçonave Dragon da SpaceX no próximo ano. Um astronauta da Nasa também deverá voar em um foguete russo Soyuz no próximo ano.
Em uma declaração ao Post, Nelson disse que a Nasa deseja que a parceria com a Rússia continue.
“Por mais de 20 anos, os astronautas da Nasa e os cosmonautas da Roscosmos viveram e trabalharam juntos na Estação Espacial Internacional - uma história de sucesso que rendeu inúmeras descobertas e possibilitou pesquisas impossíveis na Terra”, disse o comunicado. “Esse é o poder do espaço - unir as nações para o benefício da humanidade - e a Nasa está comprometida em continuar nossa parceria muito eficaz com a ISS.”
Ter os russos ligados à estação é uma coisa boa para as relações futuras no espaço, disse Todd Harrison, diretor do Projeto de Segurança Aeroespacial do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais.
“Na verdade, a Rússia conduzindo o teste (do míssil anti-satélite) é mais uma razão para mantê-los na estação conosco”, disse ele. “Se eles vão criar milhares de fragmentos, ameaçando a estação, gostaria que alguns de seus cosmonautas assumissem o risco. Se não forem, a Rússia tem ainda menos razões para ser um bom ator no espaço.”
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