O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) está informando às varas da Justiça Estadual em São Paulo que não há mais dinheiro para pagar perícias médicas de segurados que solicitam benefícios em casos de acidentes, o que tem deixado os beneficiários sem os pagamentos. Desde o início de outubro, procuradores federais que atuam em nome do órgão têm apresentado a mesma explicação em diferentes processos: a verba para o serviço não foi suficiente e "os recursos disponibilizados já foram esgotados".
A falta de dinheiro do INSS para perícias médicas tem levado a duas situações na prática. Em alguns casos, a Justiça suspendeu processos, o que impede o pagamento dos benefícios às pessoas até a conclusão do caso. Em outros, os peritos têm aceitado trabalhar sem saber quando vão receber. Nas ações, o INSS tem solicitado que as perícias sejam autorizadas com “pagamento dos honorários para momento posterior”, sem especificar um prazo. Tanto o INSS quanto o Instituto Brasileiro de Perícias Médicas (IBPM) afirmam não ter dados sobre o número de ações paradas por falta de dinheiro. Neste ano, já foram feitas 611 mil perícias na Justiça Federal.
Casos parados
Um açougueiro de 57 anos, que preferiu não se identificar, está com a perícia parada na 5ª Vara Cível de Guarulhos. Em 2014, ele sofreu um acidente enquanto carregava alimentos em um supermercado. Rompeu um tendão no ombro e foi afastado do trabalho. Em 2016, após ter o benefício suspenso, recorreu à Justiça e conseguiu validá-lo novamente. Em agosto deste ano, recorreu ao Judiciário mais uma vez, mas o processo parou após o INSS alegar falta de dinheiro.
Com o procedimento suspenso, o açougueiro não consegue fazer o exame para tentar reaver o auxílio de cerca de R$ 1,7 mil. Se conseguir vencer na Justiça, o INSS terá de pagar os valores atrasados. A advogada Lucimara de Menezes Freitas, que o representa, diz nunca ter visto situação semelhante a essa e conta os prejuízos.
Já a vigilante Suelene Maria da Silva Santos, de 45 anos, conseguiu agendar o exame mesmo depois de o INSS ter dito que não havia verba. Ela sofreu um acidente de moto, no ano passado, no Rodoanel Mário Covas (SP), e quebrou o braço esquerdo. Passou por uma cirurgia e voltou a trabalhar, mas ainda sofre com sequelas. “Meu braço perdeu força. Não consigo segurar uma coisa pesada por muito tempo”, conta ela, que tenta reaver o benefício na Justiça. “Eu sinto dor.”
A perita médica Cláudia Gomes aceitou trabalhar no caso, mesmo sem saber quando haverá pagamento. Ela disse ao Estadão que, assim como outros colegas da área, recebeu pela última vez em setembro. Desde outubro, não houve mais pagamentos.
“O prazo para entrega do serviço executado continua o mesmo. A cobrança para que se entregue o que foi feito não mudou. A gente continua tendo que cumprir nossos prazos, e sem saber como eu vou pagar minhas contas se eu ficar dependendo exclusivamente disso”, afirma.
Segundo a perita, seu único contato são os funcionários das varas de Justiça, que não são os responsáveis pela efetivação do pagamento. “Eles repassam para a gente a informação que eles têm: não tem dinheiro.”
Os honorários dos peritos de diversas especialidades (Medicina, Odontologia, Economia, Contabilidade, Engenharia, Arquitetura, Psicologia e Serviço Social) foram fixados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em resolução de 2016. Para perícia médica, os valores variam entre R$ 370 e R$ 870.
A presidente do Instituto Brasileiro de Perícias Médicas (IBPM), Ana Carolina Tormes, afirmou ao Estadão que os médicos peritos que trabalham na Justiça Federal também estão com dificuldades para receber os honorários desde que a lei expirou no fim de setembro. Ela avaliou que o problema enfrentado pelos profissionais pode levar a um represamento de processos e a uma fila de exames no Judiciário.
"O principal risco é que a população vulnerável perca o seu acesso à Justiça, uma vez que sem perícia, o juiz enfrentará dificuldades para analisar algo que foge ao seu conhecimento, já que incapacidade e deficiência, demandam análise por profissional capacitado", disse a presidente.
Verbas insuficientes
Em ofícios anexados às ações o INSS diz que o pagamento depende de aprovação do Congresso para a liberação de verbas. “Apenas após a aprovação pelo Congresso Nacional por maioria absoluta e a emissão dos títulos do Tesouro Nacional seria materialmente possível o pagamento decorrente dos ônus processuais e das condenações judiciais impostas ao INSS. A dotação orçamentária em questão foi aprovada para os pagamentos do ano corrente, mas a verba afetada não foi suficiente a toda a despesa”, afirma o órgão.
A dificuldade para o pagamento de perícias enfrenta dois principais obstáculos. O primeiro deles, explícito nos ofícios do INSS à Justiça, é a chamada regra de ouro do Orçamento. Com sucessivos rombos nas contas públicas, o governo tem precisado bancar despesas correntes com recursos obtidos via emissão de dívida, o que normalmente é vedado, mas pode ser feito após autorização especial dada pelo Congresso Nacional.
O crédito para este ano, que servirá como essa autorização especial, ainda não foi aprovado pelos parlamentares. O Ministério da Economia tem negociado a urgência dessa votação com o Congresso, mas já precisou lançar mão de uma portaria emergencial para evitar, por exemplo, a falta de recursos para pagar salários de servidores.
Poderes divergem sobre a conta de honorários
A perícia médica passa por um momento turbulento também em outra frente. Em 23 de setembro, expirou o prazo de dois anos para que o Executivo assumisse o pagamento dos honorários dos peritos judiciais em ações envolvendo o INSS na Justiça Federal. Até setembro de 2019, essa despesa era de competência do Judiciário, saindo do orçamento dos tribunais, mas uma lei aprovada pelo Congresso e sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro autorizou que o Executivo assumisse a despesa, que crescia de forma significativa na esteira do aumento da judicialização de benefícios do INSS.
Desde o fim de setembro, a responsabilidade pelo pagamento se transformou em alvo de um “jogo de empurra”, enquanto os segurados ficam em um limbo. “Com o fim do prazo previsto na Lei 13.876 de 2019, o pagamento das perícias judiciais passa a ser de competência do Poder Judiciário”, informou o Ministério do Trabalho e Previdência ao Estadão.
Enquanto isso, o Conselho da Justiça Federal (CJF) afirma em comunicado que “para as nomeações de peritos ocorridas após 23/9/2021, os pagamentos respectivos somente poderão ocorrer caso seja aprovada lei autorizando a continuidade do pagamento pelo Executivo”. Ou seja, o órgão ignora a possibilidade de o próprio Judiciário retomar os desembolsos.
Segundo apurou o Estadão com fontes do governo, o impasse se dá porque o Judiciário usou o espaço no Orçamento para realizar outras despesas, que teriam agora que ser cortadas para abrir caminho à retomada dos repasses. De acordo com um integrante do governo, a despesa “é claramente do Judiciário”, mas não querem pagar para não reduzir seu espaço no teto de gastos, regra fiscal que limita o avanço das despesas à inflação.
De acordo com essa fonte, o Executivo aceita assumir a despesa, mas com condições, e busca apoio ao projeto de lei 3.914, de 2020. Aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ), da Câmara dos Deputados, em agosto, a proposta transfere o pagamento da perícia médica para o autor da ação a partir de 2022. A proposta livra famílias de baixa renda da despesa. Como o parecer da comissão era conclusivo, o texto foi enviado diretamente ao Senado.
Na Casa, o projeto chegou a entrar em pauta, mas foi retirado. O texto foi criticado durante sessão de debate convocada pelos senadores e está sem relator desde que o senador Luis Carlos Heinze (Progressistas-RS) deixou o projeto.
Procurado, o Ministério do Trabalho e Previdência informou que, “com o fim do prazo previsto na Lei 13.876 de 2019, o pagamento das perícias judiciais passa a ser de competência do Poder Judiciário”. A pasta relatou que “a dotação atual na ação orçamentária de pagamento das perícias judiciais é de R$ 336,4 milhões, tendo sido empenhados (primeira etapa do pagamento, uma espécie de autorização) R$ 191,3 milhões e efetivamente pagos R$ 184,2 milhões”. O Ministério da Economia foi procurado, mas não se manifestou.
Ver todos os comentários | 0 |