Em fevereiro de 2006, a transexual brasileira Gisberta foi assassinada brutalmente na cidade do Porto, em Portugal, por um grupo de 14 adolescentes. O caso foi à Justiça e mobilizou o movimento LGBT da época, mas resultou, como condenação mais grave, apenas a prisão de oito meses para o mais velho dos garotos, então com 16 anos. Gisberta morreu aos 45 anos com seu corpo violentado por vários dias e, ao final, jogado em um poço. Ela saiu do Brasil aos 18 anos, fugindo dos altos índices de assassinatos de homossexuais, na década de 1980, em São Paulo.
Esse fato, tão corriqueiro para o país que mais mata transexuais no mundo, foi amplamente discutido em Portugal, gerou uma peça de teatro, um documentário e a canção Balada de Gisberta, composta pelo português Pedro Abrunhosa e interpretada por Maria Bethânia.
A mais recente imersão na história de Gisberta se deu pelo jovem escritor Afonso Reis Cabral com a publicação, em 2018, do livro Pão de Açúcar, lançado agora no Brasil pela HarperCollins. O título faz referência ao local onde Gisberta passou seus últimos dias, um torreão na cidade de Porto, desativado e destinado a sem-teto e com um estacionamento. Não à toa, essa arcada imensa de concreto que apontava para o céu abrigou Gisberta em uma cave, espécie de subsolo, o subterrâneo da arquitetura que traz em seu nome algo de sonhador.
O autor diz que se interessou pela escrita após ler uma reportagem publicada em 2016 por Catarina Marques Rodrigues no jornal português Observador. Em busca de mais informações, ele se mudou de Lisboa para a cidade de Porto por um período, onde fez uma pesquisa sobre o caso Gisberta.
A partir daí, criou uma literatura que traz a voz na primeira pessoa, mas não da protagonista em questão, e sim de um dos garotos. Rafael é um adolescente de 12 anos que conhece Gisberta num dia em que caminha com sua bicicleta pelo Pão de Açúcar. Ele nutre por ela um misto de admiração, afeto e repulsa, que oscilam no decorrer do livro. Esses sentimentos se alternam e tudo fica mais claro quando ele convida um dos outros garotos a conhecê-la: “Queres ver um gajo com mamas?”. Ao compartilhar Gisberta com os amigos, o carinho que sente por ela é constantemente desconstruído pelo desejo do coletivo de garotos que querem violentá-la e dar fim a uma pessoa que traz um conjunto de discriminações sociais múltiplas: Gisberta é transexual, soropositiva, imigrante, prostituta e não possui moradia.
Este evento brutal traz na literatura de Afonso Reis Cabral uma aura poética. Os capítulos do livro se alternam de maneira não linear aos acontecimentos, apresentando ora os encontros presentes, ora passagens de um passado das personagens, como o capítulo em que Gisberta relata para Rafael quando tinha 17 anos e resolveu aproveitar o primeiro passeio que fazia com seu pai para contar o que todos já sabiam. O pai trabalhava em uma garagem confeccionando peças de madeira e, naquele dia, os dois saem com uma motosserra para realizarem juntos a “ação que seria de um homem”, nas palavras do pai: cortar um jacarandá. E é em meio a essa ação que Gisberta narra sua ansiedade em contar sobre sua identidade para o pai, o que acaba por acontecer durante o barulho da motosserra e da queda do imenso jacarandá, não sabendo se de fato o pai ouvira o seu relato.
Outro momento em que a literatura expande a realidade é quando Rafael simula em seus desejos levar Gisberta em sua bicicleta ao topo do torreão e tirá-la da cave: “Como seria bonito subir com ela ao torreão, acompanhá-la num dos últimos momentos da felicidade inconsequente”. E, finalizando, como um Fando e Lis (peça de Fernando Arrabal): “Seguiríamos pelo parque, indiferentes aos condutores estacionando os carros, gente que não entendia que estávamos no centro do mundo, talvez até do universo. Quem sabe uma criança apontaria para nós, puxaria pela mala da mãe, diria: ‘Aquela senhora e aquele rapaz são esquisitos, de bicicleta entre os carros’. A mãe esforçar-se ia por disfarçar. ‘Apontar é feio’”.
Pão de Açúcar sinaliza para a feiura da sociedade, para um fato tão bárbaro e tão constante em nossos dias. O autor pesquisou a realidade dos acontecimentos e construiu uma narrativa poética, brutal e encantadora.
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