Fechar
Blog Opinião
GP1
*Arthur Teixeira Júnior

Imagem: GP1Arthur Teixeira(Imagem:GP1)Arthur Teixeira

Meu mundo resume-se agora à sala de minha casa. Por alguns motivos práticos: é o maior espaço do imóvel, onde sem grandes traumas coube uma cama, uma cômoda, mesa plástica, duas cadeiras e meu armário de ferramentas. A TV já estava lá. Contribuiu também o acesso direto à rua e uma janela, de onde passei a testemunhar o mundo exterior, a partir de minha cadeira de rodas.

Por ser uma janela lateral, não tenho uma ampla visão. Consigo conferir somente o movimento do boteco da frente (o Domingão do Frango), do ponto de ônibus, da mercearia do Sr. Santo na esquina e do trecho sul de minha rua. Mas é melhor do que passar o dia assistido “Mais Você” e as reprises das novelas. Sinto-me como James Stewart, em “Janela Indiscreta” (Alfred Hitchcock, 1954). E é melhor do que aturar a Iris.

Já falei, neste espaço, sobre minha secretária do lar, Iris. Na verdade, seu nome não é Iris. Seu verdadeiro nome é algo exótico que resolvemos, em comum acordo, substituí-lo. Iris é a encarnação do “nada vai dar certo”. Seu semblante lembra a fome, um vendaval cinzento, uma grande dor de barriga. Teve somente dois empregos antes de aqui vir labutar: foi garota propaganda de uma famosa funerária local e motorista do trem fantasma em um parque de diversões no shopping.

Para ela tudo vai dar errado, e aquilo que ainda não deu errado é só uma questão de tempo. Dizem que em outra encarnação, foi contemporânea e inspiradora de Murphy (autor das Leis de Murphy). Havia um personagem de desenho animado, que somente os mais idosos se lembrarão, que muito lhe assemelha: o Hardy, a hiena da dupla Lippy & Hardy.

Prevenida, já escreveu seu epitáfio: “Aqui jaz o exemplo de que se alguma coisa pode dar errado, dará. Dará errado da pior maneira, no pior momento e de modo que cause o maior dano possível.”

Mas voltemos ao meu dia a dia. Às seis da manhã chegam ao Domingão os três bêbados que vão passar o dia inteiro por lá. Um ex-mecânico que não fala, mas sim berra cada palavra que pronuncia, um carroceiro que confeccionas vasos cerâmicos nos raros momentos de sobriedade e o Lima, um vagabundo de carteirinha, que come, bebe e vive as custas dos outros e dos ditos “Programas Sociais”.

Logo depois das sete da manhã começa a sinfonia de buzinas dos carros e motos que se cruzam em uma esquina ao norte, a qual escapa de meu campo de visão, onde todos acreditam que tem preferência e os outros tem que pararem para que o bonitinho passe tranquilamente. Lá vale o ditado “se é um de cada vez, primeiro eu!”. A energia que gastam metendo a mão na buzina freneticamente poderiam empregá-la acionando ligeiramente o freio e deixando o outro passar.

Por volta das onze da manhã, alguns clientes começam a vir comprar os frangos que o Domingão assa em uma enorme churrasqueira enferrujada. Coitados. Levam para casa o almoço da família, sem imaginarem como e com qual higiene foram preparados e temperados. Mas eu vejo.

Vejo também que a loira religiosa da esquina de baixo embarcou no ônibus pela porta dos fundos, sem pagar passagem. Voltou lá pelas sete e meia da noite, cabelos molhados e sem a maquiagem. A filha do pedreiro, que mora na casa cor de pêssego, ficou aguardando o ônibus no ponto e deu até “chauzinho” para o pai que ia ao trabalho de bicicleta. Mas deixou o ônibus das oito passar batido e embarcou em um carrão prata com vidros fumê.

Depois do almoço, lá pelas duas da tarde, começam a chegar ao Domingão os fregueses com seus carros de som. Geralmente em cada carro são três ou quatro homens, que descem para beber e obrigam toda a vizinhança a escutarem as músicas que preferem. Raramente chegam acompanhados por mulheres e jamais vão embora com alguma. Todos comentam que não gostam da fruta, preferindo o reggae ou o brega.

As seis da tarde, um pouco a mais, uma caravana de trabalhadores da construção civil, de uma obra das proximidades, a qual eu também não consigo observar da minha janela, passam felizes e falantes, pedalando suas bicicletas, rumo aos seus lares para o merecido descanso, inclusive o pedreiro da casa pêssego. Sua filha voltará somente lá pelas sete da noite, pouco antes da novela. Vai desembarcar do mesmo carrão prata, duas esquinas abaixo, mas carregando seu material escolar junto ao peito. Antes de entrar em casa alisa os cabelos com uma das mãos e ajeita a farda do colégio que agora veste.

As oito da noite o Domingão e o Sr. Santo encerram as atividades do dia, por medo dos assaltos quase que diários. Os bêbados vão embora, mais bêbados ainda. O marido da loira volta cansado ao lar, pouco depois da esposa, igualmente cansada. O trânsito na rua ameniza, sendo quase nulo. Os carros de som foram embora com seus machos ao volante e seus amigos como passageiros, todos embriagados, abraçados e mais surdos. É melhor eu fechar a janela e ir assistir a novela das oito e meia. Amanhã tem mais.

Só para finalizar. O PT perdeu sua base parlamentar no Congresso por um único motivo: os deputados perceberam que estavam ficando somente com as migalhas da rapinagem promovida nos cofres públicos. Enquanto o Governo lhes distribuía cargos no terceiro e quarto escalões da administração e fazia vistas grossas para pequenos furtos em licitações subalternas (tanto que alguns órgãos públicos nem mais publicam seus contratos comerciais em seus boletins de serviço internos), os caciques se fartavam nas tetas da alta corrupção, Petrobrás, Eletronuclear, BNDES, e outros. Assim, não há quem permaneça fiel à base de sustentação parlamentar. Pelo menos no Brasil.

*Arthur Teixeira Júnior é colaborador

*** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do GP1

Ver todos os comentários   | 0 |

Facebook
 
© 2007-2024 GP1 - Todos os direitos reservados.
É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita do GP1.