Devido ao grande sucesso que a divulgação de uma cartinha enviada pelo meu filho viajador, resolvi publicar a mais recente recebida:
“Querido Papai,
Finalmente cheguei à Europa, embora esteja visitando primeiro alguns países da antiga União Soviética, ainda no lado oriental do continente. Na cidade onde estou, cujo nome é impronunciável com oito consoantes e somente duas vogais, o povo é alegre e hospitaleiro, embora, talvez por problemas culturais, possuam alguns hábitos esquisitos.
O trânsito é caótico com muito mais carros do que as ruas podem comportar. Não há obras viárias e as que começaram estão abandonadas ou andam em um ritmo tão lento que quando ficarem prontas já estarão obsoletas. Fazem uma avenida de duas pistas, mas o canteiro central fica parecendo um código Morse, com retornos e brechas a cada dez metros. Depois de pronta, a Prefeitura começa a fechar os retornos para melhorar a fluidez do tráfego. Por que não pensaram nisto antes de fazer a avenida?
Em cada cruzamento mais movimentado constroem uma rotatória, conseguindo congestionar o trânsito em todos os sentidos e também dentro da rotatória. Quando percebem que não deu certo, colocam um semáforo. Aqui deve ser o único lugar do mundo com rotatórias providas de semáforos, ou semáforos com rotatórias embaixo. Todos trafegam pela esquerda, até mesmo as bicicletas, carroças e patinetes.
Os nativos gastam milhares de dólares em veículos com potentes motores turbo, alta tecnologia e freios ABS para andarem a 10 km/h pela faixa da esquerda. Ou um carro com porta malas enorme e enchem-no com auto falantes com o único objetivo de atazanar os outros nativos. Estacionam onde bem entendem, na porta de garagens, em fila dupla, na margem do canteiro central e sobre as calçadas.
São comuns os pequenos acidentes de trânsito, como aquelas pequenas encostadinhas de pára-choques, uma lanterninha quebrada ou um risquinho no pára-lama. Mas onde quer que aconteça o acidente, os motoristas param e descem para discutir, mesmo sabendo que ninguém vai pagar ninguém. Obstruem pontes, viadutos, cruzamentos, avenidas, e lá ficam por horas, sob sol ou chuva, aguardando a chegada da polícia que, logicamente, nada de prático faz, limitando-se a produzir umas papeletas com os dados dos veículos e motoristas envolvidos. Depois de horas, todos vão embora carregando aquelas papeletas como se tivessem resolvido alguma coisa.
Os pedestres atravessam as ruas em qualquer lugar e sem olhar para os lados. Como resultado, volta e meia um acaba ficando estendido no asfalto (ambos todo quebrado). Daí a população se manifesta e coloca fogo em pneus, carros e ônibus, pedindo a construção de uma passarela. Quando esta é construída, ninguém atravessa por ela pois acham muito alta e longa. Também colocam fogo nos ônibus quando estes atrasam ou quebram pelo caminho. No dia seguinte não tem ônibus para ninguém.
O asfalto que utilizam no calçamento das ruas é de péssima qualidade e não agüenta o tráfego. Como resultado, são remendados porcamente e semanalmente. Quando está muito remendado, a Administração local manda recapear toda a rua e o asfalto fica lindo e novinho. No dia seguinte as Companhias de Água, a de Esgoto, de Telefonia, Iluminação, enfim, todas, começam a abrir valas para ampliação dos serviços e a rua fica pior do que antes.
Pintam a faixa central da pista, com listras brancas. Na outra semana vem outra equipe e pinta uma ciclovia vermelha em uma das margens. A faixa central fica “fora de centro” e então vem uma equipe pintá-la de preto e depois outra pintar nova faixa central branca. Passam o ano inteiro neste pinta e apaga.
Estou hospedado em um hotel de luxo, pelo menos para os padrões locais, construído com dinheiro público advindo do banco estatal. Os banheiros são de granito negro contrastando com os halls que são de granito branco. Antigamente tinha torneiras eletrônicas nas pias, mas como ninguém sabia consertá-las, substituíram por convencionais. Vozes metalizadas, lembrando o Grande Irmão do livro “1984” (George Orwel), estão por todo o lugar orientando e advertindo. “Não prenda a porta” ou “Segure-se que vamos descer”, no elevador. “Que cocô fedido!” ou “Não se esqueça de lavar as mãos”, no banheiro.
Os elevadores funcionam tão bem que o encarregado do setor de manutenção iria ser condecorado, mas não o foi pois não tinha pescoço para pendurarem a homenagem. As câmeras de segurança em 3D, Full HD, termo sensíveis e com visão noturna, monitoradas por quatro atentos vigilantes que se revezam 24 horas por dia, garantem nossa segurança. O difícil é estacionar nosso carro. Embora o estacionamento seja exclusivo dos hóspedes (já que o pessoal que trabalha utiliza-se do subsolo), e tem 300 vagas para os 300 apartamentos, começou a ser utilizado por terceiros, no começo com autorização e vagas limitadas.
Mas agora avacalhou geral. Construíram uma ampliação no terreno ao lado, espaço que estava reservado para construção de um restaurante popular, mas este estacionamento também já está sobrecarregado. Pudera, o pessoal da vizinhança toda usa nossas vagas, os visitantes, os entregadores, prestadores de serviço, estudantes e até os detentos da delegacia vizinha usam estas vagas, enquanto cumprem suas penas.
Bem, vou terminando por aqui, pois a noite falta luz e o gerador não funciona, embora não possamos falar isso, pois se ouvirem nos processam. Ou seja, ao invés de consertarem o gerador, utilizam deste tempo para processar-nos. Coisas do terceiro mundo. Na semana passada o único relógio do hotel ficou dois dias sem funcionar. Serviram o almoço às quatro da tarde e o jantar às duas da manhã. Alguns funcionários não vieram trabalhar, aproveitando que ninguém sabia que horas o expediente começava e terminava, ou se era dia de semana ou domingo. Cogitaram retirar um velho relógio da sala de museu, mas ninguém achou a chave.
Beijão, seu filho, Bruno”
*Arthur Teixeira Junior é funcionário público
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Imagem: GP1Arthur Teixeira Júnior
“Querido Papai,
Finalmente cheguei à Europa, embora esteja visitando primeiro alguns países da antiga União Soviética, ainda no lado oriental do continente. Na cidade onde estou, cujo nome é impronunciável com oito consoantes e somente duas vogais, o povo é alegre e hospitaleiro, embora, talvez por problemas culturais, possuam alguns hábitos esquisitos.
O trânsito é caótico com muito mais carros do que as ruas podem comportar. Não há obras viárias e as que começaram estão abandonadas ou andam em um ritmo tão lento que quando ficarem prontas já estarão obsoletas. Fazem uma avenida de duas pistas, mas o canteiro central fica parecendo um código Morse, com retornos e brechas a cada dez metros. Depois de pronta, a Prefeitura começa a fechar os retornos para melhorar a fluidez do tráfego. Por que não pensaram nisto antes de fazer a avenida?
Em cada cruzamento mais movimentado constroem uma rotatória, conseguindo congestionar o trânsito em todos os sentidos e também dentro da rotatória. Quando percebem que não deu certo, colocam um semáforo. Aqui deve ser o único lugar do mundo com rotatórias providas de semáforos, ou semáforos com rotatórias embaixo. Todos trafegam pela esquerda, até mesmo as bicicletas, carroças e patinetes.
Os nativos gastam milhares de dólares em veículos com potentes motores turbo, alta tecnologia e freios ABS para andarem a 10 km/h pela faixa da esquerda. Ou um carro com porta malas enorme e enchem-no com auto falantes com o único objetivo de atazanar os outros nativos. Estacionam onde bem entendem, na porta de garagens, em fila dupla, na margem do canteiro central e sobre as calçadas.
São comuns os pequenos acidentes de trânsito, como aquelas pequenas encostadinhas de pára-choques, uma lanterninha quebrada ou um risquinho no pára-lama. Mas onde quer que aconteça o acidente, os motoristas param e descem para discutir, mesmo sabendo que ninguém vai pagar ninguém. Obstruem pontes, viadutos, cruzamentos, avenidas, e lá ficam por horas, sob sol ou chuva, aguardando a chegada da polícia que, logicamente, nada de prático faz, limitando-se a produzir umas papeletas com os dados dos veículos e motoristas envolvidos. Depois de horas, todos vão embora carregando aquelas papeletas como se tivessem resolvido alguma coisa.
Os pedestres atravessam as ruas em qualquer lugar e sem olhar para os lados. Como resultado, volta e meia um acaba ficando estendido no asfalto (ambos todo quebrado). Daí a população se manifesta e coloca fogo em pneus, carros e ônibus, pedindo a construção de uma passarela. Quando esta é construída, ninguém atravessa por ela pois acham muito alta e longa. Também colocam fogo nos ônibus quando estes atrasam ou quebram pelo caminho. No dia seguinte não tem ônibus para ninguém.
O asfalto que utilizam no calçamento das ruas é de péssima qualidade e não agüenta o tráfego. Como resultado, são remendados porcamente e semanalmente. Quando está muito remendado, a Administração local manda recapear toda a rua e o asfalto fica lindo e novinho. No dia seguinte as Companhias de Água, a de Esgoto, de Telefonia, Iluminação, enfim, todas, começam a abrir valas para ampliação dos serviços e a rua fica pior do que antes.
Pintam a faixa central da pista, com listras brancas. Na outra semana vem outra equipe e pinta uma ciclovia vermelha em uma das margens. A faixa central fica “fora de centro” e então vem uma equipe pintá-la de preto e depois outra pintar nova faixa central branca. Passam o ano inteiro neste pinta e apaga.
Estou hospedado em um hotel de luxo, pelo menos para os padrões locais, construído com dinheiro público advindo do banco estatal. Os banheiros são de granito negro contrastando com os halls que são de granito branco. Antigamente tinha torneiras eletrônicas nas pias, mas como ninguém sabia consertá-las, substituíram por convencionais. Vozes metalizadas, lembrando o Grande Irmão do livro “1984” (George Orwel), estão por todo o lugar orientando e advertindo. “Não prenda a porta” ou “Segure-se que vamos descer”, no elevador. “Que cocô fedido!” ou “Não se esqueça de lavar as mãos”, no banheiro.
Os elevadores funcionam tão bem que o encarregado do setor de manutenção iria ser condecorado, mas não o foi pois não tinha pescoço para pendurarem a homenagem. As câmeras de segurança em 3D, Full HD, termo sensíveis e com visão noturna, monitoradas por quatro atentos vigilantes que se revezam 24 horas por dia, garantem nossa segurança. O difícil é estacionar nosso carro. Embora o estacionamento seja exclusivo dos hóspedes (já que o pessoal que trabalha utiliza-se do subsolo), e tem 300 vagas para os 300 apartamentos, começou a ser utilizado por terceiros, no começo com autorização e vagas limitadas.
Mas agora avacalhou geral. Construíram uma ampliação no terreno ao lado, espaço que estava reservado para construção de um restaurante popular, mas este estacionamento também já está sobrecarregado. Pudera, o pessoal da vizinhança toda usa nossas vagas, os visitantes, os entregadores, prestadores de serviço, estudantes e até os detentos da delegacia vizinha usam estas vagas, enquanto cumprem suas penas.
Bem, vou terminando por aqui, pois a noite falta luz e o gerador não funciona, embora não possamos falar isso, pois se ouvirem nos processam. Ou seja, ao invés de consertarem o gerador, utilizam deste tempo para processar-nos. Coisas do terceiro mundo. Na semana passada o único relógio do hotel ficou dois dias sem funcionar. Serviram o almoço às quatro da tarde e o jantar às duas da manhã. Alguns funcionários não vieram trabalhar, aproveitando que ninguém sabia que horas o expediente começava e terminava, ou se era dia de semana ou domingo. Cogitaram retirar um velho relógio da sala de museu, mas ninguém achou a chave.
Beijão, seu filho, Bruno”
*Arthur Teixeira Junior é funcionário público
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