Em uma vitória marcante para a defesa dos direitos indígenas no Brasil, a Associação Indígena Gamela , composta por indígenas piauienses, conquistou uma liminar que suspende a construção de uma estrada dentro do território da aldeia Laranjeiras, localizada em Currais no Sudoeste do Piauí. Segundo informações fornecidas ao GP1 pela Associação Indígena, a decisão, emitida em resposta a uma Ação Civil Pública (ACP), interrompe as atividades do Estado do Piauí e do consórcio Hidros/Ótima, que atuavam na região sob licenciamento considerado irregular.

A estrada visava facilitar o escoamento de grãos produzidos na região, principalmente soja, atendendo aos interesses do agronegócio. Contudo, para os povos indígenas Gamela, essa obra representa mais um avanço do desmatamento sobre seu território tradicional, onde cultivam e preservam seu modo de vida. Segundo o Cacique Salvador Gamela, a construção foi marcada por graves violações, como a ausência de consulta prévia, livre e informada que é um direito garantido aos povos indígenas pela Resolução 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Foto: Divulgação/ Associação Indígena Gamela
Estrada no Piauí que estava sendo construída irregularmente em território indígena

Escuta e registro das denúncias

A decisão favorável vem após diversas tentativas das lideranças Gamela em denunciar a situação e exigir a paralisação das obras. Em março de 2024, representantes da Defensoria Pública da União (DPU), como o defensor federal Dr. Rômulo Plácido, e membros da Universidade Federal do Piauí (UFPI) estiveram na aldeia Laranjeiras, onde conduziram uma escuta qualificada das denúncias e observaram a destruição causada pela construção irregular.

O encontro contou com a presença de professores e extensionistas da UFPI, engajados no projeto "Universidade Popular" desde 2018, que visa fortalecer a organização indígena Gamela. Durante a visita, foram documentadas as violações, que mais tarde seriam peças-chave na ACP. Os relatos apontaram que, desde fevereiro de 2024, maquinários pesados vinham realizando a supressão de vegetação nativa na área. Além disso, áreas de roçado, utilizadas tradicionalmente pelos indígenas para cultivo de alimentos, foram devastadas, afetando diretamente a subsistência da comunidade.

Ação judicial e concessão de liminar

A ação judicial apresentada pela DPU e pela Associação Indígena Gamela contra o Estado do Piauí e o consórcio Hidros/Ótima aponta que as licenças expedidas pela Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (SEMARH-PI) e pela Secretaria de Transportes (SETRANS-PI) violam os direitos da comunidade indígena. As lideranças relataram que enfrentaram pressões das autoridades estaduais para aceitar a construção, mas mantiveram sua posição firme em defesa do território.

O juiz responsável pelo caso, Jorge Peixoto, concedeu uma liminar determinando a suspensão imediata das licenças ambientais e das obras. Na decisão, o magistrado destacou a ameaça à preservação da terra indígena e à segurança da comunidade, apontando que o desmatamento intensificado e a destruição da vegetação colocam em risco a sustentabilidade do território.

Entre as principais ordens da liminar, o juiz determinou:

1. A suspensão dos efeitos da Licença Prévia nº 01645-9/2021 e da Licença de Instalação nº 05081-4/2022, concedidas pela SEMARH-PI;

2. A interrupção imediata das obras por parte do Estado e do consórcio Hidros/Ótima, sob pena de multa diária de R$ 100 mil em caso de descumprimento.

Impacto da estrada no território Gamela

Foto: Divulgação/ Projeto de Extensão Universidade Popular
Visita do Defensor Federal da União e da UFPI (Projeto de Extensão) ao território indígena Gamela.

De acordo com a professora Socorro Arantes, da UFPI, a resistência dos povos indígenas Gamela contra os interesses do agronegócio é um exemplo de luta pelo cerrado e pelo meio ambiente. “Hoje o bioma cerrado na região do Matopiba é um verdadeiro deserto tomado pela monocultura de soja. A estrada somente beneficia as empresas multinacionais de grãos”, comentou Arantes. Ela destacou que o avanço desenfreado da monocultura provoca não apenas a destruição da vegetação nativa, mas também a diminuição de recursos hídricos, comprometendo o futuro do bioma e das comunidades que dependem dele.

A estrada, planejada para beneficiar diretamente o escoamento de produtos agrícolas, representa um exemplo de como o desenvolvimento econômico não tem se revertido em melhoria de qualidade de vida para as populações locais. Segundo Dona Natividade Gamela, presidente da Associação Indígena de Laranjeiras, o custo de vida na região aumentou significativamente com a chegada do agronegócio, enquanto a população local enfrenta altos índices de empobrecimento e marginalização.

A expansão da fronteira agrícola e a resistência dos povos originários

A decisão liminar é, para o povo Gamela, uma esperança de frear a expansão da fronteira agrícola no sudoeste do Piauí. Contudo, a luta é contínua. A expansão da agricultura comercial, marcada pelo aumento da área plantada com soja e outras culturas voltadas para exportação, tem avançado sobre territórios tradicionais e áreas de conservação, desencadeando conflitos fundiários e socioambientais.

Além de contestarem o impacto ambiental, os Gamela resistem ao apagamento cultural e à violação de seus direitos. Na Ação Civil Pública, o Cacique Salvador Gamela pontuou que a ausência de consulta pública sobre o projeto é uma clara violação de direitos internacionais reconhecidos pelo Brasil. Para ele, a presença das instituições, DPU e UFPI, fortalece a resistência e destaca a urgência de medidas que respeitem e protejam os direitos dos povos indígenas.

Uma vitória temporária, mas significativa

Embora a concessão da liminar represente uma vitória importante para o povo Gamela, ela é apenas um passo em um processo mais longo e complexo. A resistência indígena no Piauí reflete as tensões e desafios enfrentados por diversas comunidades tradicionais no Brasil, em meio a políticas que priorizam o crescimento econômico em detrimento da preservação ambiental e dos direitos humanos.

A decisão do juiz Jorge Peixoto reitera que a proteção ao território indígena e ao cerrado, um dos biomas mais ameaçados do país, é fundamental. Para as lideranças Gamela, a suspensão das obras é uma demonstração de que a organização e a luta coletiva podem, sim, trazer resultados na defesa dos direitos indígenas e do meio ambiente. A batalha jurídica e política segue, e a comunidade Gamela, fortalecida por essa vitória, continua na linha de frente na defesa de seu território, de sua cultura e de sua sustentabilidade.