Seiscentos e noventa e oito computadores; 344 veículos; 1,5 mil dosímetros de radiação; software insubstituível; quase todo equipamento anti-incêndio. A lista do que as forças invasoras da Rússia roubaram, explodiram ou arrebentaram a tiros nos laboratórios de Chernobyl ainda está sendo compilada.
Mesmo que a catástrofe que muitos temiam tenha sido evitada — da guerra espalhar radiação por toda a região a partir do local do pior acidente nuclear da história, ocorrido 1986 — funcionários da usina de Chernobyl estão fazendo o inventário a respeito do caprichoso e caótico mês russo por aqui, período em que nove de seus colegas foram assassinados e outros cinco, sequestrados.
“Não posso dizer que eles prejudicaram a humanidade, mas certamente causaram grande dano econômico à Ucrânia”, afirmou Mikola Bespali, de 58 anos, diretor do Laboratório Central de Análise da usina, sentado em um auditório pichado pelos russos.
A enorme central nuclear de Chernobyl não produz mais eletricidade, mas antes da invasão cerca de 6 mil funcionários ainda monitoravam os duradouros efeitos do desastroso derretimento ocorrido mais de três décadas atrás e processavam combustível nuclear usado em outras usinas na Ucrânia e em outros países da Europa.
Localizada a poucos quilômetros da fronteira com Belarus, a usina de Chernobyl foi um dos primeiros lugares ocupados pelas tropas russas. Yevhen Kramarenko, diretor da “zona de exclusão” — uma área de 1,6 mil quilômetros quadrados onde os níveis de radiação permanecem altos e o acesso público é limitado — afirmou que, no primeiro dia da invasão, um general russo se apresentou como novo líder da central, acompanhado de funcionários da Rosatom, a agência estatal de energia nuclear da Rússia.
“Acredito que, quando eles chegaram”, afirmou Kramarenko, “seu plano era ficar permanentemente, assumir o controle por um longo período”.
Usina ocupada
Nos dias que antecederam a invasão, quase todos os funcionários foram retirados, exceto algumas centenas. Os que ficaram trabalharam em turnos infinitos sob a supervisão dos russos, com frequência sem nenhuma folga por dias a fio, tentando manter a central nuclear segura e seus sistemas funcionando.
Enquanto isso, equipamentos e informações da usina eram sistematicamente roubados ou destruídos, afirmou Kramarenko. Agora que está de volta ao comando, Kramarenko está checando a localização de equipamentos roubados que possuem rastreadores com GPS. Alguns ainda transmitem seus dados de localização.
“Vimos que parte do material está em território belarusso, ao longo da fronteira. E parte está se movendo dentro de Belarus — por Gomel, Minsk e outros lugares”, afirmou ele.
No fim das contas, ele estima que o custo para substituir o que foi perdido ficará em mais de US$ 135 milhões. O software, porém, havia sido fabricados especialmente para a central nuclear e, portanto, é insubstituível. Bespali afirmou que alguns dos trabalhos mais importantes realizados em seu laboratório — como o monitoramento dos níveis de radiação na zona de exclusão para detecção de elevações e picos — são quase impossíveis de realizar sem o programa.
“Neste momento é impossível fornecer informações confiáveis, mesmo que o equipamento esteja em condições de funcionar, porque não temos o software”, afirmou ele. “Os russos não serão capazes de utilizar o software porque ele é único, feito especialmente para nossos dispositivos.”
Cenário pós-apocalíptico
Mesmo antes da ocupação, um ar pós-apocalíptico pairava sobre a central nuclear. A usina localiza-se em meio a uma densa floresta, repleta de nuvens de mosquitos. Pripyat, a cidade onde os funcionários viviam antes do desastre, está sendo retomada pela natureza.
Um enorme “sarcófago” de concreto e aço foi colocado sobre o local onde ocorreu o derretimento. Debaixo de seu domo, 200 toneladas de combustível nuclear em forma de lava, 30 toneladas de poeira altamente contaminada e 16 toneladas de urânio e plutônio continuam a emanar imensos níveis de radiação.
As paredes dos laboratórios da usina, recintos anteriormente estéreis, iluminados por lâmpadas fluorescentes, onde predominavam ruídos mecânicos, agora estão manchadas por marcas de incêndio; os ambientes estão cobertos por escombros. Alguns edifícios foram completamente destruídos.
Poucos técnicos retornaram. Eles mostraram a repórteres em visita à usina vídeos que registraram em seus telefones assim que voltaram para seus postos de trabalho e encontraram o lugar completamente arrebentado, expressando choque e indignação a cada equipamento destruído que encontravam.
“Trabalho aqui desde 1.º de maio de 1986 e tudo em que estive trabalhando por 30 anos foi arruinado ou saqueado”, afirmou Leonid Bohdan, de 59 anos, diretor do departamento de espectrometria e radioquímica do laboratório. Ele já havia interagido com funcionários da Rosatom no passado — até viajou para Moscou em 2013, para uma conferência. Agora, ele sente uma raiva intensa de seus homólogos russos, que ele acusa de terem destruído Chernobyl por inveja.
“Nós vamos consertar tudo. Isso aqui vai funcionar outra vez”, afirmou ele. “Mas é como se alguém tivesse ido à sua casa, visto que estava tudo lindo, arrumadinho, e por isso fizesse cocô nos lençóis brancos da sua cama. Eles têm inveja da nossa capacidade.”
Bohdan, Bespali e Kramarenko não acreditam que os funcionários da Rosatom roubaram software e equipamentos de Chernobyl para usá-los para seus próprios objetivos. Os russos sabiam que não poderiam usá-los de nenhuma maneira, afirmaram eles, portanto, a explicação mais plausível é que a destruição foi punitiva.
Outra possibilidade, afirmaram eles, é que as autoridades nucleares russas tenham começado a acreditar na propaganda do Kremlin anterior à invasão, que acusou falsamente a Ucrânia de trabalhar com potências ocidentais no desenvolvimento de uma arma nuclear. Ainda que os funcionários de Chernobyl achem difícil acreditar que seus homólogos da Rosatom ignorariam tudo o que sabem sobre a usina — que seus antecessores soviéticos construíram — eles reconhecem o imenso poder da propaganda, especialmente em tempo de guerra.
“Quando vi (a propaganda), dei risada — apesar da situação não ser nada engraçada”, afirmou Bespali. “Minha mulher também trabalha no laboratório — ficamos olhando um para a cara do outro, não tínhamos palavras.”
Ao longo dos próximos meses, Bespali espera trabalhar para aos poucos retomar completamente o ritmo, apesar da retomada total não ser possível antes que a lei marcial seja levantada. Por agora, os funcionários de Chernobyl estão trabalhando para melhorar os planos de fuga do local, no caso de uma nova invasão. Tropas russas voltaram a se concentrar ao longo da fronteira próxima à usina, e tropas belarussas também reforçaram posições.
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