Enquanto novas variantes do coronavírus se espalham rapidamente, países tomam providências para reintroduzir controles nas fronteiras, prática que se tornou o novo normal na Europa durante a pandemia e está fragmentando o território que já foi a maior área de livre trânsito no mundo.
Temendo as novas variantes altamente contagiosas - identificadas primeiramente no Reino Unido e na África do Sul -, Alemanha e Bélgica introduziram novas restrições nas fronteiras na semana passada, aderindo a medidas que já tinham sido tomadas por outros países.
A União Europeia considera o livre trânsito um pilar fundamental para o aprofundamento da integração do continente, mas, após uma década em que o terrorismo e a crise migratória testaram esse compromisso, o fácil recurso de controlar fronteiras está colocando essa política sob nova pressão.
A Comissão Europeia, corpo executivo da UE, tenta dissuadir países da ideia de limitar o livre trânsito desde março passado, após a maioria deles ter imposto restrições no início da crise. O resultado é uma colcha de retalhos de regras de fronteira que mudam constantemente, o que tem semeado o caos, ao passo que nem sempre evita a disseminação do vírus.
“Na primavera do ano passado, tivemos 17 Estados-membros diferentes introduzindo restrições nas fronteiras, e a lição que aprendemos naquele momento foi que isso não conteve o vírus, mas prejudicou incrivelmente o mercado comum e causou enormes problemas”, afirmou à imprensa a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, na semana passada. “O vírus nos ensinou que fechar fronteiras não impede a passagem (do vírus).”
Mas muitos países parecem sentir que é irresistível reassumir o controle das fronteiras. A fala de Von der Leyen, e uma sugestão por parte dos assessores de comunicação da comissão de que novas restrições deveriam ser revertidas, foi rechaçada pela Alemanha, que ecoou a nova normalidade entre países da UE no contexto do coronavírus: nossas fronteiras, nossa decisão.
“Estamos combatendo a mutação do vírus nas fronteiras com República Checa e Áustria”, afirmou o ministro alemão do interior, Horst Seehofer, ao tabloide Bild. A comissão “deveria nos apoiar, e não mandar seus assessores de comunicação atrás de nós com conselhos furados”, disparou.
O sistema de trânsito de pessoas e mercadorias sem fronteiras é conhecido no jargão europeu como Schengen, em homenagem à cidade em Luxemburgo onde o tratado estabelecendo esses princípios foi assinado, em 1985, pelos cinco países do centro do que é hoje a União Europeia.
Hoje, o Espaço Schengen abrange 22 dos 27 Estados-membros da UE, assim como quatro vizinhos (Islândia, Lichtenstein, Noruega e Suíça), onde os viajantes, por princípio, atravessam fronteiras livremente, sem serem submetidos a inspeções ou outros procedimentos.
“Minha maior preocupação — e eu lido com o Acordo de Schengen há muitos anos — é que o Espaço Schengen esteja em grave perigo”, afirmou Tanja Fajon, deputada eslovena no Parlamento Europeu e líder da comissão de análise do Acordo de Schengen do organismo.
Ao longo da década anterior, ataques terroristas em países da UE e a exploração das preconizadas liberdades de Schengen por parte de militantes que pulavam de país em país deixaram evidente que a cooperação entre as forças de segurança e o compartilhamento de informações de inteligência não acompanharam o ritmo da abertura das fronteiras dos países europeus.
Entre 2015 e 2016, a chegada de mais de 1 milhão de refugiados que fugiram da guerra na Síria deu um golpe decisivo no Acordo de Schengen. Muitos países-membros, evitando compartilhar o fardo, reforçaram suas fronteiras, isolando a si mesmos e usando países dos limites do bloco europeu, como Grécia e Itália, como zona de amortecimento.
O impacto da crise dos refugiados sírios marcou uma transformação que abalou a política europeia de fronteiras. A ausência de fronteiras, no passado um ideal romântico de uma Europa unida, próspera e livre, foi ceifada pela direita e pela extrema direita e qualificada, em vez disso, como uma ameaça.
Pouco depois, até políticos moderados começaram a considerar as fronteiras internas da Europa desejáveis, após décadas trabalhando para desmantelá-las.
“O livre trânsito é um símbolo da integração europeia, o resultado mais tangível dessa integração, algo que as pessoas sentem na realidade”, afirmou Tanja.
“Agora não é somente a pandemia que o ameaça — o Espaço Schengen está em crise desde 2015, quando começamos a ver controles internos de fronteira usados para proteger interesses mesquinhos relacionados a refugiados, sem nenhum benefício real”, acrescentou ela.
A aparentemente incontrolável disseminação do coronavírus está dando um terceiro golpe no sonho de fronteiras abertas na Europa.
“Schengen não é um sistema muito resiliente diante de crises”, afirmou Marie De Somer, especialista do European Policy Center, instituto de pesquisa com sede em Bruxelas. “Quando o clima está ameno, ele funciona, mas, assim que ficamos sob pressão, vemos falhas e lacunas em seu funcionamento, e a covid é um excelente exemplo disso.”
Países que pertencem ao Espaço Schengen podem por direito expresso reintroduzir fiscalizações em suas fronteiras, mas precisam superar alguns obstáculos legais para isso e não devem manter as medidas no longo prazo.
Um fator que pode ajudar a manter as fronteiras abertas é o enorme e imediato impacto econômico sentido atualmente como resultado até de pequenas restrições — um reflexo de como o funcionamento cotidiano do bloco tem sido construído com base na ausência de fronteiras há décadas.
Desde 14 de fevereiro, as únicas pessoas autorizadas a entrar na Alemanha pela fronteira com a República Checa ou com a região do Tirol, na Áustria, onde casos de covid-19 provocados pela variante de coronavírus originada no Reino Unido estão aumentando, são alemães que vivem na Alemanha, transportadores de cargas ou trabalhadores em serviços essenciais no país. Todos são obrigados a se registrar e mostrar um teste negativo de coronavírus antes de serem admitidos no país.
Mas milhares de pessoas na Áustria e na República Checa viajam diariamente para trabalhar na Alemanha e, após as novas restrições entrarem em prática, longas filas começaram a se formar nas fronteiras. Passada uma semana, grupos de empresários escreveram cartas desesperadas às autoridades alemãs, pedindo que o país alivie ou elimine as restrições e alertando que a aparentemente limitada e específica manobra já havia provocado caos nas redes de fornecimento.
“As medidas têm implicações bastante sérias para toda Áustria e, portanto, contradizem claramente a ‘lição aprendida’ na primavera passada”, afirmou Alexander Schallenberg, ministro das relações exteriores da Áustria.
Ainda assim, mesmo em um futuro próximo imaginário, em que a maioria dos europeus tenha sido vacinada e o coronavírus finalmente esteja sob controle, o futuro do Espaço Schengen será provavelmente contestado.
A luta pelo futuro do Espaço Schengen continua, afirmou Tanja, a deputada do Parlamento Europeu, enquanto a Comissão Europeia se prepara para apresentar um estudo de estratégia a respeito do assunto este ano.
“A questão é: que tipo de Schengen teremos?”, afirmou Tanja. “Câmeras escondidas nas fronteiras registrando placas de automóveis ou outras ferramentas tecnológicas questionáveis?”
Ainda assim, Marie acha que o livre trânsito tem importantes aliados a longo prazo: os jovens do continente.
“Os jovens estão dizendo que, na crise da covid, experimentaram pela primeira vez como é viver em uma Europa com fronteiras”, afirmou ela. “Isso fez com ele eles valorizassem a ausência de fronteiras.”
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