A escolha do novo presidente da Interpol, que será definido em eleição nesta quinta-feira, 25, coloca em evidência mais uma vez as tensões entre regimes autoritários e democracias liberais sobre o uso de poderes de polícia. A votação realizada na Turquia - país acusado pelo ocidente de caminhar em direção a um autoritarismo cada vez mais flagrante -, tem como favorito um alto funcionário dos Emirados Árabes Unidos, o que motivou duras críticas de grupos de direitos humanos.
Com sede na Europa, a Interpol é uma parte pouco compreendida, mas importante, da aplicação da lei. A própria organização não investiga nem prende suspeitos de crimes, mas compartilha informações e ajuda as agências policiais de quase todos os países a encontrar e deter foragidos.
Em uma época em que cada vez mais crimes e criminosos cruzam as fronteiras internacionais, a capacidade da Interpol de identificar e auxiliar a deter rapidamente os suspeitos procurados é mais importante do que nunca. Mas as operações da organização também estão sob crescente observação. Alguns países e ativistas dizem que seu sistema de "alerta vermelho" está sendo usado para atacar e perseguir críticos políticos de vários regimes opressores.
Mais de 140 países membros estão reunidos na Turquia - um país que tem reprimido cada vez mais figuras da oposição desde uma tentativa de golpe em 2016 - para eleger o próximo presidente da Interpol, com cada país tendo direito a um voto. Em um discurso no Senado dos EUA na semana passada, o senador Roger Wicker criticou o local da reunião, dizendo que a Interpol "se tornou uma ferramenta nas mãos de déspotas e vigaristas que buscam punir dissidentes e oponentes políticos em um esforço para transformar a aplicação da lei de outros países contra o estado de direito."
O senador ainda afirmou que a Turquia era "um dos piores abusadores" do sistema de notificação vermelha. Em um exemplo de destaque, a mídia estatal turca relatou em 2019 que o governo havia solicitado um alerta contra a estrela da NBA, Enes Kanter, que criticava fortemente o governo.
Enquanto as organizações-membros escolhem seu próximo líder, controvérsias passadas e atuais ainda pairam sobre a Interpol.
O último presidente da Interpol eleito para um mandato de quatro anos, Meng Hongwei, está cumprindo uma pena de prisão na China por corrupção - acusações que sua esposa diz terem sido fabricadas por outras autoridades chinesas para silenciá-lo.
Os dois principais candidatos para ocupar a Presidência são o major-general Ahmed Naser al-Raisi, dos Emirados Árabes Unidos, e a coronel da polícia tcheca, Šárka Havránková. A votação está marcada para quinta-feira.
Entre os membros da Interpol, al-Raisi é considerado o provável vencedor, depois de passar meses viajando pelo mundo e se reunindo com policiais para ouvir suas esperanças para a organização.
Mas sua candidatura atraiu críticas pelo histórico dos Emirados Árabes Unidos em direitos humanos. Críticos pedem também uma maior investigação sobre uma doação de US$ 50 milhões (R$ 279,2 milhões) que o país prometeu à fundação da Interpol há vários anos.
David Calvert-Smith, ex-diretor de promotoria pública da Inglaterra e do País de Gales, divulgou um relatório concluindo que os Emirados Árabes Unidos "estão tentando influenciar indevidamente a Interpol por meio de financiamento e outros mecanismos".
Em uma entrevista na terça-feira, Havránková disse que sua candidatura é "para aqueles países membros que se preocupam com a forma como as pessoas nos veem como um símbolo do estado de direito e da esperança", acrescentando: "Confiança e respeito podem ser perdidos em muito pouco tempo."
Em comparação com os orçamentos da polícia em muitas cidades dos EUA, os custos operacionais anuais da Interpol são bastante pequenos - cerca de US$ 150 milhões (R$ 839,3 milhões). E a organização muitas vezes luta por financiamento, tornando a doação de US$ 50 milhões dos Emirados Árabes Unidos muito mais alarmante para alguns.
A Human Rights Watch e o Centro de Direitos Humanos para o Golfo disseram que al-Raisi é responsável por investigar queixas sobre a polícia e as forças de segurança em um país que há muito é criticado por abusos.
“A escolha do general al-Raisi como presidente da Interpol indicaria que os Estados membros da Interpol não têm nenhuma preocupação com o histórico dos Emirados Árabes Unidos na perseguição de críticos pacíficos”, disse Khalid Ibrahim, o diretor executivo do centro, em um comunicado no início deste ano. “Sua candidatura é mais uma oferta dos Emirados Árabes Unidos para adquirir respeitabilidade internacional e amenizar seu deplorável histórico de direitos humanos.”
Um porta-voz do Ministério de Relações Exteriores e Cooperação Internacional dos Emirados Árabes Unidos disse que al-Raisi "está orgulhoso que os Emirados Árabes Unidos foram recentemente reconhecidos... como um dos países mais seguros do mundo." O general trabalhou durante décadas para modernizar a força policial nos Emirados Árabes Unidos, disse o porta-voz, com melhor treinamento, novas tecnologias e mais mulheres nas fileiras.
“Ele acredita firmemente que o abuso ou maltrato de pessoas pela polícia é repugnante e intolerável”, disse o porta-voz. “Qualquer reclamação legal que possa ser apresentada com alegações contra al-Raisi não tem mérito e será rejeitada.”
Independentemente de quem seja eleito, o funcionamento diário da sede da Interpol em Lyon é supervisionado pelo secretário-geral - Jürgen Stock, um policial alemão cujo mandato expira em 2024.
E o trabalho é enorme - o banco de dados da Interpol contém mais de 66.000 alertas vermelhos, dos quais apenas 7.600 são públicos. Os outros são secretos, principalmente na esperança de que um fugitivo procurado apareça em um aeroporto onde possa ser detido.
Uma vez que uma pessoa é presa com a ajuda de um alerta vermelho, ainda pode levar meses - em alguns casos anos - para que essa pessoa seja extraditada para o país que apresentou acusações criminais contra ela.
Candidato brasileiro tenta vaga no Comitê Executivo
A disputa na Turquia também tem um representante brasileiro. O delegado de Polícia Federal Valdecy Urquiza Júnior disputa uma vaga na vice-presidência do Comitê Executivo da organização, contra candidatos da Colômbia e de Trinidad e Tobago.
O Comitê Executivo da Interpol é responsável por indicar, a cada cinco anos, o secretário-geral da organização. Há também outras atribuições estratégicas, como a definição do orçamento, das metas a serem priorizadas a cada gestão e das diretrizes de fiscalização das atividades. A perspectiva de participar das tomadas de decisão faz com que, tradicionalmente, as vagas sejam disputadas até a véspera da votação. As eleições deste ano acontecem em meio a uma demanda crescente por maior diversidade geográfica nos cargos de tomada de decisão.
"De fato, o poder da organização vem desse conselho. Isso porque todos os países participam da organização em um espírito de cooperação multilateral, mas evidentemente que cada um tem sua agenda prioritária", explicou Urquiza Júnior em entrevista ao Estadão. “Hoje ainda há uma concentração, nos cargos de direção da organização, de países da Europa. O Comitê Executivo traz a possibilidade de o Brasil influenciar mais nas decisões pensando em seus interesses nacionais e regionais”, acrescentou o candidato brasileiro.
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