Futebol e negócios são termos com origens distintas, mas que cada vez mais têm se deparado com a necessidade de caminharem juntos. De se integrarem. O futebol é paixão, prazer, tem em sua essência a brincadeira dentro da competição. Os negócios, por outro lado, necessitam de planejamento, gestão, racionalidade. Frieza.
Muito se fala na ampliação das receitas dos clubes que, de maneira geral, vêm crescendo nos últimos anos. Segundo dados da Pluri Consultoria, a receita dos principais clubes brasileiros cresceu 63% entre 2015 e 2019, bem acima dos 31,06% da inflação acumulada.
Isso se deu em grande parte em função do crescimento dos valores dos direitos federativos dos jogadores, decorrentes da inflação e pelo fato de o futebol no mundo movimentar valores muito altos, dentro do que economistas chamam de “inflação de custos do negócio futebol”.
As despesas, no entanto, subiram em proporção maior no mesmo período, 87%, mantendo os clubes em permanente déficit. Isso muito em função também desta chamada inflação de custos do negócio futebol, em que um jogador recém-promovido da base chega a receber R$ 200 mil por mês.
CAIXA ÚNICO
Um experiente conselheiro do Flamengo, Ronaldo Gomlevsky, que tem acompanhado há pelo menos 20 anos as várias gestões no clube, inclusive fiscalizando as administrações, conta que, em geral, no futebol brasileiro o caixa do clube é único. Tal situação dá ao presidente e ao diretor financeiro grande poder de distribuição dos gastos.
“Clube de futebol é como qualquer atividade que tenha o objetivo de ser bem-sucedida. Paga-se em dia se há administração decente; se não, não se pagará em dia. Isso se tiver dinheiro. Depende do tipo de administração e do objetivo do clube. O Flamengo atual, por exemplo, tem uma situação distinta das outras equipes. Muitas vezes o clube pode comprar porque a torcida, de alguma maneira, paga como consumidor. Cada um tem de ver o limite de suas possibilidades, dentro de uma administração equilibrada”, afirma.
Neste sentido, cabe ao administrador do clube, no caso a diretoria, saber lidar com as despesas, para que elas não se tornem tão ou mais crescentes do que as receitas, segundo o executivo de futebol Francisco Ferreira, CEO da Ceperf (Consultoria de Excelência em Performance de Futebol).
“Os mecanismos de controle, fiscalização e punição sempre foram muito falhos, por causa de uma legislação primária, baseada em sociedade privadas sem fins lucrativos. A esperança é que com a lei da SAF (Sociedade Anônima do Futebol, sancionada em agosto de 2021) isso não exista mais no futebol e que a gestão seja transparente com busca de resultado. E o lucro é uma condição facilitadora para a performance. O que se espera é uma moralidade não só nas finanças, mas na conduções de todo o processo”, ressalta Ferreira.
Para Raul Corrêa da Silva, ex-diretor financeiro do Corinthians, na gestão que contratou o atacante Ronaldo (2008) e levou o clube ao título da Libertadores de 2011, esse equilíbrio é necessário, mas os clubes mais populares precisam sempre ter como meta os títulos, o que exige maiores gastos em salários e contratações.
“Clubes como o Corinthians e o Flamengo precisam sempre estar pelo menos entre os quatro primeiros. Isso se não buscarem o título. Fui um dos que participaram da formação do Profut, que estabeleceu limites para gastos. Mas há clubes que não podem prescindir de um elenco forte. Cada clube tem uma vocação, seja para ser campeão, seja para ficar na faixa intermediária da tabela ou seja para revelar jogadores. Cada um tem de ter em mente a própria dimensão de seus objetivos para fazer uma gestão mais eficiente.”
O ex-dirigente, hoje CEO da consultoria BDO Brazil, conta que implantou o modelo de transparência dos gastos e das receitas no Corinthians, que, segundo ele, é pioneiro e foi seguido, a partir da gestão de Eduardo Bandeira de Mello (2013 a 2019), pelo Flamengo.
“Foi algo necessário que ajuda muito no equilíbrio financeiro, porque, com a transparência, os gastos excessivos acabam sendo detectados com maior facilidade. É um instrumento importante para qualquer gestão de clube. O Flamengo seguiu essa iniciativa e foi bem-sucedido”, ressalta.
Tanto Silva quanto Ferreira consideram a situação de Atlético-MG, atual campeão brasileiro e da Copa do Brasil, e Palmeiras, atual campeão da Libertadores, casos específicos.
Mesmo que o objetivo no Atlético, a partir deste ano, seja ter um orçamento com fôlego próprio, o grande impulso para o crescimento das receitas veio com um investimento, entre 2020 e 2021, de cerca de R$ 400 milhões, vindos dos empresários Rubens e Rafael Menin, Renato Salvador (dono do hospital Mater Dei) e Ricardo Guimarães (dono do Banco BMG), que contrataram jogadores com altos salários, como Hulk e Diego Costa.
O Palmeiras, por sua vez, vem contanto desde 2016 com um apoio financeiro da Crefisa que, além de patrocinar a equipe, injetou dinheiro para contratações no clube, em um valor que foi considerado dívida e chegou a R$ 170 milhões.
“O Flamengo sofreu um choque de gestão e o clube se tornou autossustentável. Talvez seja o único que não precise se tornar um clube-empresa, pode se sustentar com um modelo associativo. Conseguiu atingir um patamar de receitas quase em nível de futebol europeu. Já os outros com grandes receitas, como Palmeiras e Atlético-MG, têm precisado de mecenas”, diz Ferreira.
Silva concorda: “Flamengo e Corinthians estão por si. O Flamengo seguiu a trilha que iniciamos no Corinthians. Trabalhávamos com um trio: eu nas finanças, o Andrés Sánchez, no comando, e o Rosenberg (Luis Paulo), no marketing. O Corinthians, depois do título mundial, teve excesso de gastos em 2013, 2016 e 2019, quando investiu mais do que deveria. O caso de Palmeiras e Atlético-MG é um outro modelo, contaram com investimentos de mecenas para aumentar as receitas e chegar aos títulos.”
GASTOS
Dos gastos dos clubes, o futebol é disparado o primeiro item. No Corinthians, o balanço patrimonial publicado de 2020 mostra que, das despesas totais de R$ 578 milhões, o futebol representou 486 milhões, ou seja 84%.
Por outro lado, o balanço, que pode ser tomado como base em relação a outros clubes da Série A, mostra que as receitas com o futebol, de R$ 425 milhões, totalizaram 93% do total do clube. Os outros setores, incluindo o social, arrecadaram R$ 30 milhões.
No Santos, o balanço aponta que as receitas totais em 2020 foram de R$ 240 milhões, sendo que 89% destas (R$ 214 milhões) vieram do futebol. Já os gastos totais foram de R$ 358 milhões, sendo que 74% destes (R$ 267 milhões) foram direcionados ao futebol.
A partir do momento em que o dinheiro entra no caixa do clube, ele é destinado basicamente às seguintes necessidades: folha de pagamento de funcionários; despesas administrativas; aquisição de jogadores; futebol feminino; esportes amadores; categorias de base futebol; área social; estádio; terceirizações (segurança, transportes, viagens que não são subsidiadas pela CBF); gastos tributários; dívidas com a receita, trabalhistas, bancárias e com fornecedores.
“De todos esses gastos, em qualquer instituição séria, a prioridade é o pagamento de salários dos funcionários, depois é o pagamento de impostos e de dívidas, incluindo fornecedores. Qualquer administração precisa levar isso em conta. O Flamengo, de uns tempos para cá, passou a não ter mais dívidas e sim compromissos. O que o Flamengo tem que pagar está reservado sempre”, diz Gomlevsky, sobre a administração do clube que, na gestão de Bandeira de Mello, equacionou e alongou perfis de dívidas, buscou ampliar as fontes de receitas e tornou as finanças mais estáveis.
No atual modelo vigente no Brasil, as receitas costumam vir das seguintes fontes: negociação de jogadores; direitos de transmissão; patrocinadores; premiações; produtos licenciados; programas como sócio-torcedor; bilheteria e mensalidades dos sócios.
EFICIÊNCIA DE GESTÃO
Ferreira, por outro lado, observa que o Flamengo, assim como o Athletico-PR e clubes como o América-MG, a Chapecoense, o Bragantino e o Cuiabá têm mostrado eficiência na gestão. Cada um com sua dimensão e objetivos, mas de uma maneira oposta à que se tornou comum no futebol brasileiro nos últimos anos.
“Há um problema muito grave no futebol brasileiro, diria que há uma cultura muito burra, do resultado imediato em que até uma equipe pequena, que não paga salários, está com tudo atrasado e não dá o mínimo de condições de trabalho, cobra resultados. Já trabalhei em equipe na qual eu tinha de tirar do meu bolso dinheiro para comprar medicamento, R$ 100 em um dia, R$ 200 no outro, com a diretoria cobrando resultado. Querem mágicos e isso não é possível", diz.
Outros clubes tradicionais, como Fluminense, Botafogo-RJ, Santos, São Paulo, Grêmio, Internacional, Vasco e Bahia, precisam de uma reestruturação, já que as dificuldades financeiras os distanciam dos melhores resultados e, com isso, restringem os investimentos em elencos mais fortes.
É comum, nestes casos, alguns clubes buscarem recursos em empréstimos bancários, aumentando ainda mais as suas dívidas. Mesmo com alguns destes dirigentes procurando equilibrar essas finanças, os valores se tornam tão altos que a transformação em S. A aparece como a melhor opção para que essa ciranda seja interrompida, diz Ferreira.
“O futebol é multifatorial. O modelo para o sucesso é simples, mas o futebol sofre muitas influências. O Grêmio tinha uma gestão redonda, mas não foi bem-sucedido. Mas nunca devemos tomar como exemplo as exceções, e sim a regra. Clubes como Botafogo vão pelo mesmo caminho do Cruzeiro, assim como Vasco e Bahia. A saída para muitos desses clubes é se tornarem Sociedades Anônimas”, ressalta.
Outro que considera prioritário o pagamento de salários em dia é o presidente do Avaí, Julio Heerdt. Para ele, isso acaba se tornando um diferencial, mesmo com clubes cujas receitas são menores. “No caso do Avaí é importante, pois nos dá vantagem em relação a outros clubes com maior orçamento e poder de investimento. Manter os salários em dia com um projeto bem feito é um dos trunfos na hora de acertar uma contratação”, ressalta.
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