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‘Se você quer fugir tem de ser rápido e surpreendente', diz Ghosn

Em entrevista ao ‘Estado’, executivo diz que toda a operação foi realizada em dezembro de 2019, para garantir efeito surpresa: ‘Decisão rápida, organização e execução rápida’.

Protagonista de uma fuga que teria envolvido jatos alugados de uma empresa turca, especialistas em segurança e até uma caixa de instrumento musical como esconderijo, o ex-presidente da aliança Renault-Nissan, Carlos Ghosn, não tem dado detalhes sobre como escapou do Japão. Porém, em entrevista ao Estado, neste sábado, 11, ele afirmou que todo o planejamento para empreender a fuga, executada em 29 de dezembro de 2019, ocorreu no último mês do ano. “Decisão rápida, organização e execução rápida”, resumiu.

Trabalhando no Japão há quase duas décadas, o executivo disse conhecer o modo de agir dos japoneses – por isso, pegá-los de surpresa foi fundamental. “Os japoneses não são rápidos. Eles precisam muita preparação, planejamento e entendimento – depois que eles entendem tudo eles agem rápido”, disse Ghosn. “Então, se você quer ser bem sucedido em uma fuga, você tem de ser rápido e surpreendente. Tem de planejar e executar muito rápido. O que foi feito.”


O executivo também comentou a falta de apoio do presidente Jair Bolsonaro – o governo brasileiro manteve-se neutro no caso. Segundo o executivo, Bolsonaro chegou a ligar para sua irmã, Claudine, e dizer palavras de apoio. Ghosn relatou ainda que a “ponte” com o presidente foi feita pelo ministro da Economia, Paulo Guedes.

“A posição do presidente foi influenciada pelo Ministro das Relações Exteriores (Ernesto Araújo), que disse para ele não aborrecer os japoneses. Foi a opinião que prevaleceu”, afirmou. “É uma pena. Eu sou um cidadão brasileiro – e o cidadão brasileiro, frente aos japoneses, não conta muito.”

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista:

O sr. disse ter sido vítima de uma conspiração. Foi uma operação, em sua opinião, que envolveu só o Japão, ou outras subsidiárias também, como a brasileira?

O complô foi japonês, mas a Nissan do Brasil ajudou a central para as pesquisas, para entrar na minha casa, retirar documentos. Mas não tinham uma tarefa estratégica ou de preparação.

O sr. disse que não poderia ter percebido que o que a Nissan faria. Mas, depois do ocorrido, foi possível perceber sinais de que algo estava acontecendo?

Depois você sempre analisa os sinais. Mas foram sinais muito leves, com pouca probabilidade de eu reagir e dizer: ‘Tem alguma coisa estranha aqui’. O Hari Nada (antigo executivo de Ghosn e seu principal denunciante), que foi o Judas maior, fez muitas coisas esquisitas nos quatro meses anteriores (à minha prisão). A minha assistente no Brasil me disse: ‘Eu estou estranhando’, mas eu a acalmei. Uma assistente no Líbano me falou a mesma coisa. Não prestei muita atenção porque nunca pensei que algo assim poderia acontecer. Mas, depois do fato, ficou claro que eles estavam preparando isso.

Falando das acusações da Nissan: uma delas é sobre a ocultação de ganhos futuros. Eu queria entender exatamente a sua versão da história.

É um dinheiro não pago, nenhum membro do conselho de administração sabia disso. O documento que estava, preparando ano a ano com a comparação da minha compensação com a de outros CEOs de empresas do mesmo tamanho, era mais memorando oficial – assinado por mim e por meu secretario. É um documento para ajudar a lembrar, alguns anos depois, o que seria um pagamento normal (para um cargo do tipo). A Nissan, no Japão, se declarou culpada sobre esse tema – pagaram a multa, com provisão de 9 bilhões de ienes (US$ 82 milhões). Nos EUA, eles se defendem dizendo que não existe um caso judicial. São duas posições contraditórias entre a jurisdição americana e japonesa.

O sr. acha que eles estão pagando a multa no Japão para poder te incriminar?

É claro.

O que ocorreu no uso do Palácio de Versalhes, na França, para o aniversário de sua esposa, Carole?

Eu era presidente da Renault. E a Renault ajudava algumas instituições, entre elas o Palácio de Versalhes. Direcionamentos muito recursos. Por exemplo: para a manutenção do salão onde foi anunciado o tratado de paz da Primeira Guerra Mundial, pagamos mais de 1 milhão de euros. Catherine Pégard, presidente de Versalhes, disse que eu poderia fazer uma festa privada em uma sala de Versalhes. Um gesto comercial. Isso ficou na minha cabeça e passaram muitos meses. Quando a Carole iria festejar o aniversário de 50 anos, eu sugeri Versalhes.

E como se deu essa contratação?

Contratamos uma empresa, que cuidou de tudo, da comida, dos garçons e também da sala. E nesse contrato ela marcou ‘sala oferecida’. Paguei tudo, menos o aluguel da sala. Eu nem sabia que, por trás de mim, o que aconteceu provavelmente é que o Palácio de Versalhes desautorizou o oferecimento da sala, que é um bem público. Então, o que eles fizeram? Como a Renault é um grande doador, tem crédito para usar as salas. Eles reduziram o crédito da Renault em 50 mil euros, sem dizer nada. Então, quando veio a auditoria, havia essa redução do crédito da Renault, e eles me acusaram (de uso indevido).

E o sr. pagou esses 50 mil euros?

Agora está na Justiça, não posso pagar nada. Você tem de entender que a Renault não pagou nada, foi uma diminuição do crédito da Renault – que nunca foi usado.

E o caso da contratação da sua irmã para ajudar a levar a fábrica da Nissan do Rio de Janeiro, que levou a um processo de enriquecimento ilícito contra ela? O que ocorreu?

Nada. A minha irmã (Claudine Bichara) era presidente da Câmara do Comércio Franco-Brasileira. Ela mora no Rio de Janeiro, conhecia todo mundo. Eu precisava de pessoas competentes no Rio para ajudar na instalação da fábrica. E eu pedi ajuda. E não posso pedir para ela trabalhar de graça para uma empresa. Falei com dois membros do conselho de administração da Nissan, o presidente do projeto no Brasil também sabia que ela estava participando. Fizemos um contrato baseado (na remuneração) de uma pessoa desse calibre fazendo esse tipo de trabalho.

Olhando para trás, o sr. acha que, nesses dois casos, houve uma mistura entre o profissional e o pessoal que não era necessária? O sr. faria diferente?

Francamente, não. Claramente (esses casos) estão sendo usados para mostrar que eu estava usando da minha posição para motivos pessoais. Claudine trabalhou, ajudou e todas as pessoas sabem disso. Não foi um dinheiro que ela ganhou sem fazer nada. Se eu quisesse empregar pessoas da minha família, teria centenas de pessoas – ninguém entrou na Nissan nem na Renault. Mas eu avisei pessoas da Nissan que iria contratá-la. Agora, você sabe, quando tem um problema desse tipo, todo mundo desaparece. De repente não tem mais testemunhas.

O sr. vê algum erro que pode ter cometido e que pode ter contribuído para a sua prisão?

Muitos erros. O erro mais importante foi a nomeação de pessoas que realmente não eram honestas. O Hiroto Sakawa (executivo que Ghosn escolheu para sucedê-lo na Nissan em 2016) foi uma grande traição não só à empresa, mas também ele me enganou sobre sua verdadeira personalidade. Mas eu fiz a proposta (de nomeá-lo). Foi um engano completo e, por causa disso, os resultados da Nissan foram por água abaixo. Ele se justifica falando sobre as administrações anteriores. Não é uma atitude muito corajosa.

O sr. falou que o sistema de Justiça do Japão não era justo. Teve algum evento que evidenciou que não havia saída, que era melhor fugir?

Houve uma sucessão de eventos, mas, em dezembro, muitas coisas se acumularam. No pré-julgamento, o juiz falou que iria começar o segundo julgamento em dezembro de 2020. Mas depois disse que só poderia começar o segundo depois que o primeiro acabasse. E estamos falando de pelo menos dois anos. Porque tem de contar a apelação e o recurso ao Supremo. O primeiro não foi marcado – vamos dizer que marcassem para meados de 2020. Então, dois anos para o primeiro e mais dois anos para o segundo, daria 2024. Eu pensei: ‘vou ficar cinco anos em litígio no Japão, sem saber qual será o resultado’? Isso foi uma bomba para mim.

Foi nesse momento que o sr. decidiu que iria embora?

Nesse momento, mais o fato de que o sétimo pedido para retirada da proibição de ver a minha esposa foi rejeitado. Eles falaram para mim: parece que o juiz não vai autorizar você a ver sua esposa antes do início do segundo julgamento.

A fuga, então, foi uma decisão rápida, feita ao longo de dezembro de 2019?

Rápida. Decisão rápida, organização e execução rápida. E por que rápido? Porque os japoneses não são rápidos. Eles precisam muita preparação, planejamento e entendimento – depois que eles entendem tudo eles agem rápido. Então, se você quer ser bem sucedido em uma fuga, você tem que ser rápido e surpreendente. Eles não podem (desconfiar) que talvez ele esteja preparando alguma coisa. Tem de planejar e executar muito rápido. O que foi feito.

Qual é o melhor caminho judicial para o sr. agora? É um processo no Líbano?

Qualquer jurisdição onde os direitos da defesa são garantidos é bom para mim. É o caso da França, do Líbano e do Brasil.

O sr. tem ambição, mais para frente, de voltar para o setor automotivo?

Não, eu acho que não.

Se as coisas continuarem como estão na Renault-Nissan, o que o sr. acha que vai acontecer com a empresa?

Na minha opinião, a aliança vai desaparecer. Eu não acredito por um minuto que a aliança vai sobreviver a isso.

O sr. já tem investimentos no Líbano, como a vinícola Ixsir. Mas é uma economia muito pequena. Ela cabe em suas ambições?

Hoje o que eu necessito é uma vida normal. Foram 14 meses que não vivi com minha mulher, não vi minha família e amigos. Vou passar algum tempo para retomar um quadro mais normal e depois vou ver. Tenho muitos investimentos aqui no Líbano. Evidentemente vai ter um certo momento de ampliar.

O que sr. pode falar mais sobre a falta de apoio do governo brasileiro no seu caso? É uma coisa que te incomodou?

Eu tinha muita esperança, porque em um certo momento o presidente Jair Bolsonaro ligou para minha irmã, Claudine, e disse palavras de apoio. E foi o Paulo Guedes (ministro da Economia) que nos ajudou muito (na aproximação com o Bolsonaro). Nós conhecemos o Guedes há muito tempo. Mas, em certo momento, quando o presidente Bolsonaro veio para o Japão, eu não ouvi nada. Ele disse à imprensa brasileira que, durante a visita, não falou do meu caso porque não quis incomodar os japoneses. Então foi uma decepção da minha parte. Mas entendi que a posição do presidente, que no início foi de compaixão e ajuda, foi influenciada pelo Ministro das Relações Exteriores (Ernesto Araújo), que disse para ele não aborrecer os japoneses. É uma pena. Foi a opinião dele que prevaleceu. É uma pena. Eu sou um cidadão brasileiro – e o cidadão brasileiro frente aos japoneses não conta muito.

Políticos libaneses têm falado muito em o sr. ajudar o governo. Quem não tem uma empresa pode se contentar com um país?

Eu não vou fazer política. Não vou pedir ou aceitar qualquer cargo oficial, mas tenho um know-how que pode ajudar o país agora. Então estou pronto a colocar esse know-how à disposição de políticos responsáveis para ajudar a retomar o caminho de crescimento do país.

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