Edvaldo Pereira de Moura,
Desembargador do Tribunal de Justiça do Piauí, diretor da Escola Superior da Magistratura do Piauí (Esmepi) e professor da UESPI
A legitimação da governabilidade democrática, segundo Aristóteles, deve se expressar na reciprocidade de tratamento igualitário dispensado aos candidatos e aos partidos políticos a que eles estão filiados. O instinto gregário, tomado por contingenciamentos e buscas de melhores soluções convivenciais, procura preservar, como o bem supremo do cidadão, na escala de valores morais e sociais, a liberdade humana. Isso é herança do pacto primordial, quando as hordas e as gens comunais lutavam pelas garantias de sobrevivência, nos seus agrupamentos tribais.
O achado aristotélico é axiomático, monolítico e atemporal, porque a liberdade não respira e nem medra, onde não haja isonomia. É por isso que a democracia será sempre o fiel da balança na aferição dos atos e das aspirações do homem, em defesa da qual temos a obrigação de arriscarmos a nossa própria vida.
Como sabemos, o primeiro momento real do Estado, ainda na sua fase embrionária, caracterizou-se pela transformação do binômio imanente da justiça distributiva/retributiva em verdade social permanente. Os homens dos primeiros grupamentos comunais, conheciam a justiça distributiva, através do ato de repartirem, equitativamente, os víveres e os saques de guerra. A necessidade de convívio, todavia, obrigou-os a tomarem uma consciência de autodefesa: aquele que roubasse, ferisse ou matasse um membro do grupo, estaria roubando, ferindo ou matando o próprio grupo de que fazia parte. Aliás, os gregos chamavam de diké a consciência equitativa e retributiva das organizações comunais, em que a equidade na distribuição dos mantimentos conquistados durante a refrega e a coerção moral das diferentes turbas, punindo o membro indesejável, dar-se-iam em defesa dos interesses de todos. Essa foi, essencialmente, a justiça que se conheceu em tempos que já se foram, tornando todos iguais e, por outro lado, a que premiava e punia a parte em função da integridade do todo corporativo.
O Direito, na expressão hegeliana, seria a realização crescente da liberdade dos indivíduos nesses trilhos bilineares e equidistantes. Daí a importância e a complexidade dos processos de escolha e de nomeação dos que devem gerir as coisas do Estado, depositário sagrado dos direitos e dos deveres dos cidadãos, divinos pela própria condição de afinidade e harmonia, com a eticidade, valor inafastável da faculdade de se agir, como pessoa livre. Por essa razão, quem quer que se habilite a governá-lo, a fazer suas leis e aplicá-las, deve estar imbuído dos indispensáveis e salutares princípios em que ele se funda, como nação politicamente organizada.
De fato, o processo eleitoral é o mais sagrado, o mais complexo e o mais temerário, por consistir ele na confirmação de toda a cidadania. Com certeza, na consciência da escolha e na qualidade dos escolhidos, está o destino de todos os membros da sociedade a que devemos servir, com desprendimento e inexcedível zelo. A consciência da escolha fica com o dever moral e político do cidadão-eleitor. Na qualidade do eleito, refletem-se a visão político-cultural do próprio povo e a lisura do processo eleitoral, como a mola mestra das garantias de sobrevivência e saúde moral do ente estatal.
O homem moderno, aliás, mal acostumado com as improvisações e as hipocrisias da vivência política, salvo raríssimas exceções, parece-nos que perdeu o senso de importância da responsabilidade eleitoral. Nos tempos idos, o postulante a cargo eletivo, vestia-se com uma imaculada túnica branca de linho, perante aqueles que deveriam elegê-lo, para lhes mostrar, assim, que estavam tão cândidos por dentro, como por fora. Mas o conceito de candidatura, infelizmente, vem perdendo muito de sua essencialidade de “cândido”, branco, puro, imaculado. Essa palavra, nos dias atuais, ganhou um tragicômico contraste semântico, porque os postulantes a cargos eletivos, nem sempre se encontram preparados para a defesa do voto livre e consciente e da democracia representativa. Tudo indica que já fomos melhores e que a utopia de um mundo possível é que nos faz acreditar, ainda, que todo esforço é válido, nessa luta quixotesca, em busca de uma Justiça Eleitoral que garanta, realmente, a igualdade das partes interessadas e a legitimidade da livre manifestação popular das urnas.
Adotamos no Brasil, a democracia representativa, norteada pelo pluralismo partidário, que deveria se empenhar pela legitimação do voto, quase sempre tisnado pelos conhecidos desvios de conduta de eleitores, partidos e candidatos. Todos esses desvios de conduta só deixarão de existir quando o processo eleitoral, do alistamento à diplomação dos candidatos eleitos, não estiver mais contaminado pelo uso abusivo do poder econômico, do poder político, da corrupção e da fraude. E para que possamos assegurar a lisura do processo eleitoral, temos que observar o princípio da igualdade jurídica dos partidos e dos candidatos, oferecendo-lhe igual oportunidade de participação no processo formador da vontade eleitoral, que se expressa, através da periodicidade das eleições, em que o sufrágio seja universal e o eleitor se manifeste livre e conscientemente.
O atingimento de tão salutar desiderato, no nosso sentir, só se verificará com o consciente e responsável controle do uso do poder econômico, que vai desde a ajuda financeira, pura e simples, a partidos e candidatos, até a manipulação da vontade eleitoral, por intermédio da propagando eleitoral. Abusar do poder é ir além do que a lei permite. E para a contenção de tais abusos e dos decorrentes do exercício de função, de cargo ou de emprego público, a Constituição Federal e a Lei 9.504/1997, também chamada de Lei das Eleições, possibilitam meios assaz satisfatórios, como a investigação judicial, a ação de impugnação de registro de candidatura, o recurso contra a diplomação do candidato eleito, a ação de impugnação de mandato eletivo, a ação penal e a rescisória, novidade trazida pelo Art. 22 da Lei Complementar 86/1996 e a Lei da Ficha Limpa, dentre outros instrumentos legais, mas quase sempre mal utilizados.
Finalizando, cabe-nos lembrar o que foi dito pelo ilustre publicista do início da nossa República, Alberto Sales, positivista spenceriano, irmão do presidente Campos Sales: “A elaboração intelectual e moral do brasileiro, ainda não atingiu aquele ponto por todos almejado, em que a soma do poder adquirido é justamente balanceada pela soma da responsabilidade experimentada”. Esse brado de alerta, emitido em 1891, é tão atual, que parece ter sido proferido hoje.
Infelizmente, sentimos-nos convencidos de que, na concupiscência famélica do poder, em que só o voto é importante e sem importância são os meios para a sua obtenção, a nossa cultura, nada ortodoxa em Ciência Política, verdadeiramente, não quer mesmo mudar. Vemos nisso, com tristeza, o pirracento negaceio da eticidade, vulgarizando o desprezo pela moralidade, em nítida afronta ao bem maior de todos, que é a dignidade do cidadão, sem a qual não medram, nem amadurecem, as conquistas e a responsabilidade de um povo, inspirado em elevado nível de consciência crítica e de educação política.
*** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do GP1
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