O bitcoin e outros criptoativos normalmente são avaliados somente como um investimento altamente especulativo, mas eles estão sendo utilizados pelo mundo em grande medida como transações financeiras entre pessoas, na maioria dos casos em termos nacionais. A constatação é de Kenneth Rogoff, ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI) e atualmente professor da Universidade Harvard, em entrevista ao Broadcast. Tal descoberta foi feita por ele e mais dois acadêmicos internacionais em um estudo recente que analisou 50 milhões de operações de criptoativos envolvendo 135 moedas de países durante 3 anos.
"Talvez um dos motivos de as pessoas fazerem transações com os criptoativos é que não querem que autoridades e outros cidadãos saibam os recursos que possuem, onde e de que forma foram obtidos", comenta Rogoff.
O acadêmico reconhece que a maior preocupação relativa aos criptoativos é que são transacionados por pessoas que tentam fugir do pagamento de impostos sobre capitais. Ele também aponta que tais operações podem estar relacionadas a ilegalidades. "Na China, há uma linha tênue entre o pagamento de tributos e o temor de que o governo vai confiscar os recursos dos cidadãos", disse. "Na prática, estes ativos são utilizados como notas de cem dólares com esteroides." Acompanhe os principais trechos da entrevista.
Quais são as principais conclusões do estudo que o senhor realizou recentemente sobre transações internacionais de criptoativos com Clemens Graf von Luckner e Carmen Reinhart?
O objetivo do estudo era analisar a avaliação comum segundo a qual o bitcoin e outros criptoativos são somente uma fonte de investimentos, uma espécie de ouro digital, e não são utilizados como meio de transações. Em teoria econômica, esta avaliação não faz sentido, dado que o uso final é que cria valor de uma mercadoria. Contudo, avaliamos 50 milhões de observações relativas a transações de criptoativos realizadas em 3 anos e que envolveram 135 moedas de países. Pudemos saber o horário exato e onde ocorreram as operações, dado que foram realizadas com satoshis (são necessários 100 milhões de satoshis para formar um bitcoin) e são muito pequenas as chances de verificar duas operações idênticas. Mas quando encontramos duas operações iguais, com alguns minutos entre elas, que não aparecem em nenhum outro lugar neste universo pesquisado, consideramos que é muito provável que elas representam uma transação entre dois agentes e não um investimento.
O estudo aponta que a grande maioria das transações em vários países, com destaque para Rússia e China, são operações nacionais. Qual é a principal suspeita do senhor sobre os motivos destas transações?
Na Rússia, certamente muitos oligarcas estão sob sanções internacionais de outros países, o que também ocorre com várias nações. Acredito que eles tentam evitar a vigilância financeira dos EUA. Em princípio, estas operações podem ser rastreadas, mas é preciso a permissão de autoridades para ter tal informação, que não é disponível para muitos países. Talvez um dos motivos de pessoas fazerem transações com os criptoativos é que não querem que autoridades e outros cidadãos saibam os recursos que possuem, onde e de que forma foram obtidos. É uma questão de privacidade. Algumas das operações são remessas de recursos, que são muito mais baratas do que as realizadas pela Western Union e outras companhias.
Mas uma das principais razões para pessoas fazerem transações com criptoativos, como o senhor apontou, não seria tentar fugir do pagamento de impostos sobre capitais?
Em termos gerais, esta é a maior preocupação em relação ao bitcoin e outros criptoativos. Não sei se exatamente seria uma questão de impostos, mas pode estar relacionado com ilegalidades. Na China, há uma linha tênue entre o pagamento de tributos e o temor de que o governo vai confiscar os recursos dos cidadãos. Em muitas vilas na Índia mulheres compram ouro como ativo de proteção, pois acreditam que o governo vai tomar seus recursos. Os criptoativos podem estar exercendo um papel semelhante. Em alguns casos, podemos até ser favoráveis a este procedimento, mas é muito difícil apoiar tal comportamento em muitos países onde os impostos são estáveis e as leis são respeitadas. Na prática, estes ativos são utilizados como notas de cem dólares com esteroides.
O mercado de criptoativos tem uma capitalização próxima a US$ 2,3 trilhões, que tem alta volatilidade diária. O senhor acredita que ocorrerá uma correção em breve deste mercado, que para muitos analistas é uma imensa bolha financeira?
Depende da regulação, pois no momento estes ativos realizam arbitragem regulatória. Eu acredito que são necessários controles bem rígidos sobre transações em larga escala que estão ocorrendo em muitos países e não podem ser tolerado por eles. Há uma imensa economia subterrânea no mundo, que ocorre também nos EUA. Na Itália, ela representa cerca de 25% do PIB, que no Brasil pode ser equivalente a 20% do PIB e chegaria a 15% do PIB na França e na Alemanha. Este setor movimenta ao redor de US$ 20 trilhões por ano. Neste contexto, os criptoativos podem ser mais convenientes para evitar impostos e regulações contra certas atividades ilegais, como tráfico de pessoas e vendas de drogas. Estes ativos têm um valor, que podemos avaliar que é negativo, mas ele existe. Eu nunca disse que estes ativos são uma bolha, mas precisam ser regulados, pois representam altos valores.
Recentemente, o FMI publicou um estudo de Tobias Adrian e outros autores no qual aponta que a regulação de criptoativos precisa ser abrangente e coordenada em nível mundial. Como o senhor avalia tal posição?
Não acredito que seja necessário regular todos os países, mas sim as economias mais avançadas e, de forma ideal, os maiores mercados emergentes. A abrangência das normas dependerá de quão grande é a base de valores analisada. Hoje é possível basicamente ter uma conta em bitcoin no JP Morgan e também utilizar criptoativos para comprar mercadorias, pois Elon Musk permitiu a aquisição de carros da Tesla com o pagamento em Dogecoins. Estas práticas permitem lavagem de dinheiro, que precisam ser controladas, embora não seja possível bani-las completamente. É viável tornar mais arriscado tais atividades se forem pegas pelos reguladores, mas países como Coreia do Norte e Irã nunca concordarão com tais normas globais. Se elas forem adotadas nas economias avançadas já será um grande progresso. O problema real está nos EUA, com os suspeitos de sempre atuando, especialmente os lobistas muito bem sucedidos que defendem estes ativos perante autoridades. Há ETFs de bitcoin, fundos de pensão comprando bitcoin, grandes instituições de investimento com permissão para oferecer fundos em criptoativos. Isso é loucura. Mas o problema de falta de regulação sobre estes ativos ocorre há muito tempo. Quando eu converso com dirigentes de instituições reguladoras e de bancos centrais vejo que há um forte consenso de que esta situação é um desastre, mas eles já têm muitos problemas para enfrentar.
O senhor está de acordo com a avaliação do FMI de que se não houver rígida regulação internacional sobre criptoativos o setor financeiro em alguns países pode enfrentar risco sistêmico?
Eu não concordo. Se a Rússia quiser tornar o bitcoin legal, boa sorte ao país para arrecadar impostos e cumprir as regulações. É claro que no mundo ideal seria bom ter a regulamentação em todos os países sobre tais ativos, mas isto não ocorrerá. Eu acredito que tal posição (do FMI) é exagerada.
O senhor avalia que os países membros do G-7 [grupo dos sete países mais ricos do mundo] deveriam se reunir para discutir a adoção de regulações comuns sobre criptoativos o mais rápido possível?
Estes países têm muitos problemas provocados pela pandemia, mas avalio que quando estiverem reunidos deveriam definir como adotar tais regulações. Não defendo que todas as operações com criptoativos devem ser proscritas, mas somente aquelas cujos responsáveis são anônimos. Eu acredito que o valor de mercado destes ativos vai cair de forma drástica. Mas eu também avalio que há muitos fatos interessantes que estão ocorrendo com a tecnologia Blockchain, como NFTs (Tokens Não Fungíveis, na sigla em inglês). Alguns destes ativos têm problemas, mas muitos trazem grande inovação.
Qual é a avaliação do senhor sobre o debate que ocorre em Washington no qual há congressistas que defendem normas firmes para proibir que grandes bancos façam investimentos em criptoativos, pois temem que tal exposição poderia gerar uma nova crise financeira?
Eu acredito que estas instituições não devem ter a permissão para negociar bitcoin e outros criptoativos, sem dúvida alguma. Não há um problema imediato, pois a exposição dos grandes bancos nestes ativos está começando devagar e tais investimentos podem até parecer inocentes. Porém, uma crise pode explodir muito rápido. O maior problema está com os usuários destes ativos, pois não queremos encorajar a prática de atividades que não sejam claras. Se tais operações ocorrem em países onde não existem controles não podemos fazer nada, mas é viável adotar medidas para não permitir que estes ativos sejam gastos em lojas nos EUA, como a Macy´s.
O crescimento exponencial do mercado de cripto ativos é um alerta para que os principais países no mundo acelerem a adoção de moedas digitais de bancos centrais (CBDCs, na sigla em inglês)?
Eu não sei se as CBDCs conseguirão ser substitutos dos criptoativos, pois essas moedas oficiais digitais não permitirão que seus portadores fiquem anônimos. Eu acredito que há dificuldades para conter este movimento de expansão de criptoativos, pois são necessários muitos documentos escritos para permitir que tais ativos sejam rastreados.
Qual é o risco da expansão do mercado de criptoativos avançar tanto que poderia gerar a substituição de moedas de países emergentes, o que seria a "criptoização" de tais divisas?
Eu acredito que há um risco maior de que ocorra dolarização de moedas de alguns emergentes do que a criptoização. Se um país quiser adotar controle de capitais precisará saber o que fará com o bitcoin, pois no nosso estudo mostramos que em nações onde ocorrem tais controles, muitas pessoas usam este ativo para contorná-los. O que é importante é tornar a lavagem de dinheiro muito difícil de ocorrer.
Há um debate no meio dos operadores com criptoativos no Brasil sobre se o ethereum vai superar o bitcoin em valor de mercado no longo prazo, dado que é uma plataforma tecnológica mais avançada e que poderá permitir a expansão global das empresas de finanças descentralizadas (DeFis). Quem vencerá esta disputa?
Por trás desta pergunta está uma questão que é saber qual protocolo prevalecerá para obter estas moedas: a prova de trabalho (a "mineração", que ocorre para descobrir bitcoins), ou a prova de participação (quantidade de ativos oferecidos como colateral para poder investir em ethereum). Não tenho nenhuma dúvida que a prova de participação vai vencer. A prova de trabalho expandida para todo o mercado internacional de criptoativos provocaria muitos efeitos negativos para o meio ambiente pelo mundo até 2050 devido ao alto consumo de energia, o que não é possível aceitar.
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