Um abaixo assinado de 712 juristas, penalistas, civilistas e constitucionalistas manifesta repúdio às declarações do presidente Jair Bolsonaro sobre a morte do pai do mandatário da Ordem das Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz. A relação não está pronta. Dezenas de advogados continuam a assinar e a estimativa é que, até esta sexta, 2, o documento reúna mais de mil adesões. O abaixo-assinado será entregue pessoalmente a Santa Cruz.
O documento se inicia com uma carta, assinada por seis advogados, encabeçada pelo veterano criminalista Antonio Claudio Mariz de Oliveira. “Algumas dores simplesmente não se curam. São integradas à própria existência do ser. São também parte das fibras que constroem, sustentam e dão força. Mas ainda assim são dor. E nunca deixarão de ser dor”, inicia o documento, endereçado a Santa Cruz.
Os advogados seguem: “A sua dor que essa semana foi despertada pela fala do homem que está na presidência é a dor da nossa nação. Uma ferida que nunca será fechada, mas que deve servir de combustível para nossa luta quotidiana”.
“O ataque a sua família se misturou ao ataque a sua pessoa pública e ao ofício sagrado que hoje com distinção você representa”, escrevem.
“Por isso, foi sentido por todos nós que decidimos nos manifestar contra a barbárie. Por cada um que imprimiu seu nome em sua solidariedade. Pois nenhum advogado ferido em suas prerrogativas jamais estará só”, concluem.
Na introdução do abaixo-assinado, os juristas afirmam que a declaração de Bolsonaro ‘apenas corrobora o que vem sendo evidenciado nos últimos meses, a incapacidade e insipiência de assumir de forma correta o papel de Chefe do Poder Executivo’.
“Em um estado democrático de direito não se pode permitir a flexibilização e a banalização dos momentos mais cruéis de nossa história. A defesa da memória dos desaparecidos nos “anos de chumbo” é a exteriorização da proteção da própria democracia!”, afirmam.
“Não nos resta dúvida que a advocacia apoia irrestritamente o Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Santa Cruz”, concluem.
Entenda o caso
Bolsonaro disse nesta segunda-feira: “Se o presidente da OAB quiser saber como o pai desapareceu no período militar eu conto para ele”. Em reação, a OAB divulgou uma nota de repúdio, e o Santa Cruz afirmou afirmou haver ‘crueldade e falta de empatia’ nas declarações do presidente. “É de se estranhar tal comportamento em um homem que se diz cristão”.
Na tarde desta segunda, 29, Jair Bolsonaro voltou a se pronunciar. Ele disse que Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), foi morto pelos correligionários que combatiam a ditadura a fim de evitar o vazamento de informações confidenciais. “Eles resolveram sumir com o pai do Santa Cruz”, afirmou. “Não foram os militares que mataram ele não, tá? É muito fácil culpar os militares por tudo que acontece.”
Felipe é filho de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, integrante do grupo Ação Popular (AP), organização contrária ao regime militar. Ele foi preso pelo governo em 1974 e nunca mais foi visto. “Conto pra ele. Não é minha versão. É que a minha vivência me fez chegar nas conclusões naquele momento. O pai dele integrou a Ação Popular, o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha lá de Pernambuco e veio desaparecer no Rio de Janeiro”, disse Bolsonaro em coletiva de imprensa.
O Estadão Verifica mostrou que o pai de Felipe Santa Cruz, segundo depoimento à Agência Brasil de um de seus irmãos, João Artur, não era ligado à luta armada. Outros membros de destaque da AP incluem o ativista Herbert de Souza, o Betinho, e o senador José Serra.
O livro-relatório Direito à Verdade e à Justiça destaca que um documento do então Ministério da Aeronáutica informou, em 1978, que Fernando Santa Cruz tinha desaparecido. Informações de perseguidos políticos ressaltaram que o desaparecimento ocorreu em 22 de fevereiro de 1974 e ele teria sido morto pelo DOI-CODI do Rio de Janeiro.
Bolsonaro questionou a atuação da OAB ao falar das investigações sobre Adélio Bispo, responsável pela facada contra o presidente no ano passado, durante a campanha eleitoral. Adélio foi considerado inimputável pela Justiça por transtorno mental. O presidente não recorreu.
“Por que a OAB impediu que a Polícia Federal entrasse no telefone de um dos caríssimos advogados (de Adélio)? Qual a intenção da OAB? Quem é essa OAB?”, disse Bolsonaro. O Estadão Verifica também mostrou que é falsa a informação de que o sigilo telefônico de Adélio Bispo é protegido pela OAB. A informação falsa confunde o processo do acusado com outra ação envolvendo seu advogado, Zanone Manuel de Oliveira. O boato foi publicado no início do mês no Facebook.
Sobre o fato de não ter recorrido no processo da facada, Bolsonaro disse que “Adélio se deu mal”. “Se eu recorresse, ele seria julgado não por homicídio, mas tentativa de homicídio, em um ano e meio ou dois estaria na rua. Como não recorri, agora é maluco o resto da vida. Vai ficar num manicômio judicial é uma prisão perpétua. Já fiquei sabendo que está aloprando por lá. Abre a boca, pô”, declarou.
Em junho, a Ordem dos Advogados do Brasil já havia se manifestado sobre fala semelhante do presidente contra a instituição. “Para que serve essa OAB?”, disse Bolsonaro, citando o boato a respeito de Adélio. “O presidente repete uma informação falsa, que inúmeras vezes já foi desmentida, de que o sigilo telefônico de Adélio Bispo é protegido pela OAB”, diz a nota, assinada por Felipe Santa Cruz.
Em 2011, ainda como deputado federal, Bolsonaro afirmou em palestra na Universidade Federal Fluminense (UFF) que Fernando Santa Cruz, pai do agora presidente da OAB, teria morrido “bêbado” após pular o carnaval.
À frente da OAB-Rio, Felipe iniciou movimento em 2016 para pedir ao Supremo Tribunal Federal a cassação do mandato de deputado federal de Jair Bolsonaro por “apologia à tortura “. Ao votar pelo impeachment de Dilma Rousseff, o então parlamentar fez uma homenagem a Carlos Brilhante Ustra, que comandou o Doi-Codi de São Paulo, centro de tortura durante a ditadura.
Crime de Responsabilidade
A A Associação Juízes para a Democracia (AJD), entidade não governamental, defendeu nesta segunda, 29, apuração de crime de responsabilidade de Jair Bolsonaro.
“A infeliz declaração do presidente da República banaliza o desaparecimento forçado e desrespeita a dor pungente de brasileiras e brasileiros que esperam e procuram por seus entes desaparecidos, registrando-se que grande parte dos desaparecimentos decorrem da ação das próprias forças de segurança do Estado, o que configura grave violação aos Direitos Humanos garantidos na Constituição Federal de 1988 e pela Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948”, diz a entidade de magistrados, em nota.
Aanista Internacional repudia
A Anistia Internacional divulgou uma nota de repúdio aos comentários do presidente sobre Fernando Santa Cruz e pediu que o caso seja levado à Justiça. “É terrível que o filho de um desaparecido pelo Regime Militar tenha que ouvir do presidente do Brasil, que deveria ser o defensor máximo do respeito e da justiça no país, declarações tão duras”, afirmou a diretora-executiva da Anistia no Brasil, Jurema Werneck.
“O Brasil deve assumir sua responsabilidade, e adotar todas as medidas necessárias para que casos como esses sejam levados à justiça. O direito à memória, justiça, verdade e reparação das vitimas, sobreviventes e suas famílias deve ser defendido e promovido pelo Estado Brasileiro e seus representantes”.
Em nota, a Anistia informou ainda que defende a revogação da Lei de Anistia, de 1979, “eliminando os dispositivos que impedem a investigação e a sanção de graves violações de direitos humanos, a investigação e responsabilização dos crimes contra a humanidade cometidos por agentes do Estado durante o regime militar”.
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