Edvaldo Pereira de Moura
Desembargador do TJ-Piauí. Mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS. Membro da Academia Brasileira de Letras da Magistratura – ABLM. Vice-Presidente do IMB e Professor de Direito Penal e Processual Penal da UESPI.
A história nos faz conhecer o seccionamento das épocas de maneira espetacular, sem que em nós possa frondescer a crença em um cataclismo final. Na história helenística encontramos estoicistas pregando a ecpirose, ou a destruição do universo pelo fogo, assim que tudo tiver atingido o grau máximo de perfeição. Depois disso, viria o reinício de tudo, como forma eternamente cíclica imposta pelo logus.
Para quem conhece a luta interminável do ser humano e os seus infinitos conflitos existenciais, com o meio em que vive e com o seu semelhante, a tendência de uma ecpirose, não como uma extinção do todo universal, mas como Armagedom de povos e civilizações, de culturas e de costumes, de ideologias e de valores, parece bem provável.
A dialética hegeliana é uma tentativa de superação da lógica formal aristotélica e da lógica transcendental kantiana, exatamente pela dificuldade que se tem de acomodar na lógica tradicional, a análise da dinâmica ontológica do homem. Homem de ontem, homem de hoje, homem de sempre! No entanto, uma homeomeria distinta em cada individualidade. Cada ser é uma possibilidade existencial, ímpar e irrepetível.
Esse seccionamento da temporalidade humana, não aparece aqui como simples enunciado alegórico. Ele é o cerne de nossas considerações, neste momento, quando todos nós nos propomos a examinar os problemas jurídicos e filosóficos do tempo em que vivemos.
Marilena Chauí, professora de História da Filosofia e de Filosofia Política da USP, num ensaio sobre a crise dos valores morais, referindo-se ao filme O Declínio do Império Americano, lembra que uma das personagens da história afirma que dispomos sempre de um sinal para avaliar a queda ou o começo do fim de um poder político enquanto político. O mesmo sinal, que foi percebido no crepúsculo final da democracia grega, no final do império romano, na longa agonia do Antigo Regime e, agora, nas dificuldades por que passam o império americano e outras nações importantes do mundo.
Mas que sinais são esses que caracterizam o ocaso fatal de uma época, a falência política, social, econômica e ética de um povo?
Seria o momento em que a sociedade e seus pensadores voltam-se, primordialmente, para as relações pessoais, para os indivíduos, carências, demandas e interesses para a vida privada, desinteressando-se das preocupações cívicas, morais e políticas. Família, religião da salvação, amor, juventude, felicidade, moral tornam-se assuntos preferidos. Neste momento, olha-se com profunda desconfiança para a política, vista como ilusão, mistificação e corruptora dos costumes. Critica-se a sociedade por seu egoísmo, por seu comportamento repressor dos sentimentos e da espontaneidade, dotada de mecanismos invisíveis para a obtenção da obediência. Fala-se na cisão benfazeja entre o indivíduo e a comunidade mais ampla, e se defende o direito à vida feliz, em geral identificada como o "retorno à natureza".
Entenda-se, aqui, política como aparato ideológico do Estado institucionalizado na triplicidade do poder unívoco, responsável pelo bem-estar do cidadão, seu objetivosíntese.
No Estado cuja base moral se acomoda em aporias éticas de conteúdo mais formalístico do que legítimo, surge a crise dos valores morais e espirituais. A professora Chauí lembra que a escritora sueca Sissela Bok escreveu um livro sobre a mentira, após ter verificado que, desde o século XVII, excetuando-se alguns momentos da literatura, do teatro e do cinema, reina profundo silêncio quanto aos dilemas do dizer a verdade, na vida pública e privada. O padre Antônio Vieira, no Sermão da Quinta Dominga de Quaresma, pregado na igreja maior da cidade de São Luís, no Maranhão, em 1654, dizia que "a verdade é filha legítima da justiça, porque a justiça dá a cada um o que é seu. E isso é o que faz e o que diz a verdade, ao contrário da mentira. A mentira, ou vos tira o que tendes, ou vos dá o que não tendes; ou vos rouba, ou vos condena". No entanto, Platão em A República, justifica que há ocasiões em que a mentira, como recurso da Ciência Política, na gestão da res pública é um direito do governante. Certamente esse recurso se contrapõe ao direito a uma informação exata e honesta de que necessitam os governados.
Lembra-nos, ainda, aquela extraordinária mestra, que sociólogos de linha durkheimiana, examinando o desamparo dos indivíduos nas escolhas morais, a presença de práticas e comportamentos violentos na sociedade e na política, a multiplicidade de atitudes transgressoras de valores e normas, falam em anomia, isto é, na desaparição do cimento afetivo, que garante a interiorização do respeito às leis e às regras da comunidade em que vivemos.
Aí estão as crises localizadas no cerne dos poderes instituídos pelo Estado. Diante da crise da família, da escola, da igreja e das instituições estatais, o cidadão, apossado de boa visão crítica, só pode antever o advento escatológico enunciado pelo Profeta de Patmos.
Entendamos, que isso, como nos sugere a História, é um seccionamento imposto pelos tempos. O homem, "lobo do homem" é, apenas, o lado obscuro do nosso ser, contra o qual sempre se voltaram todos os códigos positivos, todas as admoestações consuetudinárias, todas as proibições essencialistas do bem, do bom, do justo e do belo, para onde não se pode direcionar o verdadeiro sentido da vida. Sêneca, o maior estoicista do mundo latino, dizia: homo res sacra homini (o homem é coisa sagrada para outro homem) porque, membra sul-nus corporis magni (somos membros de um grande corpo).
Acreditamos que qualquer transformação radical resultante da falência de atitudes obtusas, apenas reforça, em nós, a crença no sentido ideal da vida, ou como dizia Albert Einstein: "Aquele que considera sua vida e a dos outros sem qualquer sentido é fundamentalmente infeliz, pois não tem motivo algum para viver".
Se vivemos hoje uma crise de valores morais é porque os referenciais do justo, do bem, do bom e do belo foram adulterados e conspurcados pela axiologia cruel e selvagem do capitalismo, do comunismo sem Deus e de regimes outros não norteados pelos princípios judaico-cristãos, que excelem a aparência e a hipocrisia, o hedonismo e o fausto.
Então, qualquer que seja a tomada de posição em nossos questionamentos, como os que agora haveremos de fazê-lo, levarão em conta a grata esperança de que, na qualidade de agentes transformadores do nosso tempo, chegamos a esse início de século e a esse milênio com a consciência que sempre permeou a atitude dos santos, dos sábios e dos heróis.
*** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do GP1